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Público, 7 de Outubro de 2000

12.05.15

NÃO AS ESTRELAS, MAS O ESPAÇO NEGRO QUE AS SEPARA

Eduardo Prado Coelho

 

A data é fácil de fixar - no rodar do milénio, entre um século e outro século: 1999-2000. Quando alguns pensavam que a ficção portuguesa, esgotada nos seus nomes consagrados, tinha alguma dificuldade em renovar-se de um modo afirmativo e convincente, tivemos, de uma só vez, três nomes que mudaram por completo a imagem que lentamente se estava a construir: Pedro Rosa Mendes, em primeiro lugar, com "A Baía dos Tigres", na Dom Quixote; depois, ainda na Dom Quixote, Mafalda Ivo Cruz, com "A Casa do Diabo; por fim, na Temas e Debates, uma surpresa absoluta: "Nenhum Olhar" de José Luís Peixoto. São livros extremamente diferentes, embora todos eles marcados por uma visão impiedosa, e por vezes rasa, desolada, inclemente, da realidade. Se Pedro Rosa Mendes nos desconcerta com uma ficção desenvolvida segundo os códigos do relato de viagem, e onde dificilmente sabemos onde está a verdade e onde está o fingimento; se Mafalda Ivo Cruz consegue produzir situações de esvaziamento sonâmbulo que permitem uma batida cega do inconsciente; já José Luís Peixoto nos dá inesperadamente uma narrativa rural, feita de situações limite, onde evocamos algum Raul Brandão, é certo, mas agora, como os tempos são outros, cada movimento do texto nos leva a subir "os últimos degraus da noite" até ao lugar "onde os homens deixam de ser homens".

 

É extremamente agradável lermos um grande autor que já conhecemos, e, página a página, conseguirmos confirmar todas as suas qualidades. Avançamos em terreno balizado, sabemos com o que contamos, apreciamos sobretudo a perícia e o engenho na renovação. Mas há nesta forma de leitura uma espécie de conforto assegurado.

 

Já é diferente quando de repente nos vem parar às mãos um texto de alguém que não conhecemos, que não sabemos quem é nem o que faz. Começamos a ler com todas as reservas, espreitando numa página a página seguinte, cautelosos, cépticos como se transportássemos aquele olhar cansado que já atravessou o mundo desde o início, viu tudo e tudo ouviu, e já nada espera de perturbante na vida. E aos poucos a questão coloca-se: vou deixar-me cair desamparadamente dentro deste texto, submeter-me a ele, ao seu ritmo, à sua regra íntima, à sua respiração? Lentamente, todas as palavras antigas são agora novas, resplandecentes, inaugurais. E continuamos a ler para saber até onde será possível manter este exercício funambular de caminharmos sobre o vazio, em pleno voo de um texto, suspensos e disponíveis, deslumbrados e rendidos. É o que sucede com "Nenhum Olhar" de José Luís Peixoto.

 

O livro começa por nos envolver pela escrita. Desde as primeiras linhas que nós sabemos que não se trata aqui de contar uma história e conseguir transmiti-la bem; trata-se de inventar um movimento de escrita do qual decorre toda a evidência da narrativa. Ora José Luís Peixoto tem essa qualidade notável: bastam duas linhas, e entramos num continente novo, num lugar inédito do espaço literário. Depois, resta saber até que ponto isto vai ser possível sustentar-se ou desenvolver-se. E neste romance o leitor pode estar certo de que a partir da segunda ou terceira sequência ficamos seguros de que a inclinação é fatal: vamos embater num limite, num muro, num enigma, na origem do mundo e no desastre final, num empolgamento incontrolável dos seres, das palavras, dos sinais, das paisagens, das situações, numa altíssima conjura de que não poderemos escapar.

 

Coloquemos as coisas nestes termos práticos. Este livro é feito de dois livros, que repetem, com uma parente distância de trinta anos (rapidamente reabsorvida pela espacialidade mortífera da escrita), diversas situações - repete-as em eco, em rima narrativa, em complementaridade, em assimetria e desequilíbrio, em conspiração do destino. Donde, há uma prega, uma dobra, um vinco que faz que tudo se relança no absurdo de tudo ser definitivamente o mesmo. Mas não é: porque no interior da repetição (e em termos estilísticos, toda a força do discurso de José Luís Peixoto vem do uso mágico da repetição), agem dois tipos de forças. Por um lado, temos o processo entrópico: página a página, o vazio propaga-se, a destruição insinua-se, a crueldade cresce, a desrazão aumenta. Mas, por outro lado, as explosões multiplicam-se num clima de tal modo alucinatório que a cadência feroz do nada invasor se torna estranhamente eufórica, de um vazio esplendoroso. E os gritos, as súplicas, os fabulosos monólogos interiores, as crispadas interrogações voltadas para a cor sempre excessiva de um céu emudecido de deuses, criam-nos a certeza de que onde o deserto cresce cresce também a palavra que o nega.

 

É verdade que "o fundo invencível da morte puxou-te para o seu interior infinito. Vais, puxado, a cair a maior queda." É verdade que "estás morto e, dentro da morte, sabes que estás morto. Ambos o sabemos. O que imaginaste da palavra esperança perdeu o sentido. Não há esperança, porque somos demasiado pequenos, somos muito pouco. Somos uma agulha de pinheiro diante de um incêndio, somos um grão de terra diante de um terramoto, somos uma gota de orvalho diante de uma tempestade." E "não há forma de explicar tudo o que se diz quando se diz sofrer".

 

Mas há aqueles momentos em que um olhar toca outro olhar - ambos tocados já pela distância que desde logo arruina esse florir de uma presença. Porque neste livro em que as pessoas se destroem, se traem, se embrutecem, se maltratam, se emparedam em quartos forrados da noite mais espessa, há momentos raros, furtivos, siderais, em que essas pessoas se encontram: "... e achei que era assim que todas as pessoas encontravam alguém. Chegava uma pessoa vinda de lado nenhum, sem motivo para chegar ou com um motivo que não se entendia, e oferecia-se a outra pessoa, e essa pessoa achava tudo isso natural, porque era assim que todas as pessoas encontravam alguém, e era nesse momento tão grande que ambos se entregavam para a vida, sem olhar para trás ou pensar pouco, ambos se entregavam um ao outro para a vida, porque, a partir desse momento grande, toda a vida seria assim natural, inexplicável e grandiosa. Faltou-me saber que o que é num instante o mundo, não é o mundo sempre."

 

Mas onde alguém supõe que se atingiu o lugar do início do mundo, essa primeira manhã de todas as evidências, vai-se dar um comércio de morte que tem a ver com uma espécie de crime primordial que atravessa o tempo e que nos reenvia implacavelmente para "o negro absoluto da solidão, apático negro, absoluta solidão, eterno, eterna.". E aqui o encontro converte-se numa dádiva de morte: "a tua morte tem avançado para dentro de mim como uma doença a querer progredir."

 

Todo o livro é apenas este "western" a carvão e chamas em que dum lado se ergue a súplica indefesa de cada ser e do outro se expande o laço fatal duma repetição sem transigências. E daí que se possa dizer esta coisa simples e terrível: "a noite onde morreste anoiteceu no que sou". Neste livro o mundo é uma queda infinda. E apenas se lhe contrapõe o desejo insensato daquele que nos diz que "gostava que o mundo não fosse uma queda." Neste "western" metafísico e extremamente concreto, o herói positivo é a verticalidade de um sol improvável. E a figura do mal desenvolve-se através da pastosa irreversibilidade do tempo. E este produz um reincidente desacerto nos seres, que estão sempre desajustados da sua própria evidência: "porque nunca falámos e hoje é demasiado tarde". Tudo perdido, tudo em perdição incessante, porque desde sempre se viveu a partir de um equívoco desatento: "nunca ninguém se lembra de procurar as coisas onde elas estão, porque nunca ninguém sabe o que pensa o fumo, ou as nuvens, ou um olhar."

 

Neste livro, há na aldeia um homem que escreve. De janelas fechadas, isolado, emparedado como os outros, mas insistindo em escrever, em imaginar no cego confronto que despedaça os seres uma fala íntima que os transfigure. A grande força deste espantoso livro de José Luís Peixoto está aí: no modo como narra histórias que se dobram para dentro da sua própria loucura e no fio puríssimo de luz com que as vai reunindo e salvando do esquecimento. Tudo acaba, incluindo a escrita. Mas no limite de tudo acabar acaba também a própria morte, e entra-se num espaço inaudito e impensável: "o infinito era o infinito de não ser nem infinito nem nada". E se o mundo acabou, e já não há mais tinta para escrever, começa na página seguinte essa coisa extraordinária que é o fim do medo e da morte: "tinha morrido a memória da morte" e "o medo não existia porque não existia ninguém para o sentir". E é aí, neste lugar que não é vazio porque não chega a ser lugar, que tudo se pode repetir como se fosse a primeira vez: a partir de nenhum olhar, um olhar encontra um olhar, e o escritor inventa um livro. Para escrever, não sobre as estrelas, mas sobre o espaço negro que as separa.

 

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Diário de Notícias, 16 Dezembro 2000

14.03.14

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Público, 21 Outubro 2000

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