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Lombada Quadrada, agosto 2017

01.09.17

A literatura e o segredo de Fátima

Por Carlos Carvalho

 

Sujeito corajoso e ousado o José Luís Peixoto. O escritor português se lançou no arriscado terreno da fé ao construir em Em teu ventre uma narrativa ficcional baseada nas aparições de Fátima, que completaram 100 anos neste 2017. Coragem por tratar de um tema tão delicado, a fé, sem louvações gratuitas, com o perdão do trocadilho. E ousado por abordar o tema desprovido da paixão religiosa, com distanciamento que se pode afirmar agnóstico, buscando encontrar o que de mais humano poderia haver na história de Lúcia e seus primos Jacinta e Francisco, que foram as três criaturas “agraciadas” com as aparições que mudaram a vida da pequena aldeia de Fátima, entre maio e outubro de 1917. Mudaram radicalmente uma vila e obrigaram as crianças a crescer sob a aura da santidade, recolhidas em conventos a salvo da sanha dos fanáticos.

O romance de Peixoto, que chegou ao Brasil em edição da Companhia das Letras, é narrado por uma sobreposição de vozes. Começa de forma genial emulando o formato das narrações bíblicas, com capítulos e versículos numerados. Este formato representa a voz de deus, que revela de uma certa forma as dúvidas do criador em relação ao produto de seu trabalho de 6 dias. A mãe do narrador também se faz presente ao longo do livro. Em textos curtos, entre parêntesis, fala com seu filho, expondo suas angústias de mãe e zelando para o que filho-narrador siga com a história das crianças e de sua aldeia até o fim. E temos a narrativa propriamente dos intervalos entre uma aparição e outra, sempre acontecidas nos dias 13 de maio a setembro daquele ano, que ficam rondando a relação de Lúcia, a mais velha das crianças, com sua mãe, Maria. Também é um livro sobre a concepção. Deus, que concebeu o mundo. A mãe do escritor, que nos deu um autor de talento. E a mãe de Lúcia, que observa aflita a vida de sua filha mais nova ser sacudida por um terremoto de enormes proporções.

Não sabemos como foram as aparições, não sabemos quais foram as palavras de nossa senhora, não sabemos o que revelou ao mundo através dos pastorinhos. Isso está escrito nos livros oficiais e nos relatos das crianças e, sabiamente, não aparece no livro. O que sabemos nessa construção ficcional habilmente arquitetada é o que se passou no seio da família de Lúcia e no seu entorno. Maria, a mãe da menina, com a certeza de que a filha mentia e carregava consigo os primos mais novos em uma espécie de delírio que, nas palavras da mãe, “só podia ser coisa do demônio”. O alheamento do pai e a ira dos padres, com o latente medo de perderem, eles, a primazia da conversa com o divino. E a gradativa chegada de fiéis, atraídos pelo boca a boca que vai alastrando a notícia de que a virgem apareceu a três inocentes criaturas sob a sombra raquítica de uma azinheira. Depois da primeira aparição, as seguintes tem dia marcado. Nada mais conveniente. E, a cada mês, milhares e milhares de pessoas vão chegando e destruindo as plantações do pai de Lúcia em torno da árvore a fim de encontrar um lugar privilegiado para assistir às aparições. São camponeses, burgueses de outras cidades maiores, todos a chegar com os mais variados pedidos para a santa.

A peregrinação traz também a figura que ficaria para a história como Maria da Capelinha, uma entre tantas marias daquelas paragens, que consegue convencer Lúcia de que a santa pediu que se erigisse uma capela em sua homenagem. Estava lançada a pedra fundamental do gigantesco complexo que tomaria conta do modesto sítio daquela família.

Em um romance repleto de entrelinhas, Peixoto mostra uma menina de 10 anos com pendores filosóficos a conversar com insetos, árvores, cachorros, folhas, como quando diz a estas que está cansada, neste lindo diálogo sobre o segredo, que viria a ser a chaga que acompanharia esta futura freira por toda a vida, o tal do Segredo de Fátima :

Estou tão cansada, folha.

“Estamos todos.

Acho que estou mais cansada do que todos.

Aqueles que estão mesmo cansados acham sempre isso. Se eu te contar um segredo, prometes guarda-lo?

Posso tentar, mas não depende só da minha vontade.

Como assim?

Os segredos passam por qualquer fresta, são mais fluidos do que a água, mais informes do que o ar. Podemos fazer tudo para guardar um segredo, mas ele acaba por encontrar caminho para se esvair.”

Lúcia é retratada como uma criança que já sabia que seu destino estava irremediavelmente moldado por aquelas aparições. Em muitos momentos, o leitor talvez torça para que ela se arrependa e diga que foi tudo uma invenção e siga com sua vida de criança, a brincar pelos campos, ajudar os pais e seguir a vida de uma família camponesa que, se não era rica, tinha os meios para a sobrevivência garantidos por uma terra fértil e um rebanho gordo.

Mas Lúcia é uma pessoa atormentada pelas aparições, que não consegue entender todo o palavrório da mãe e dos padres a tentar lhe convencer de que não pode seguir com aquilo das aparições.

E ela conduz os primos para cada uma daquelas aparições, observando o crescimento da multidão, em número e fanatismo, certa de que tem um papel a cumprir. Um fado.

Estamos em 1917, a guerra consome parte da Europa, muitos dos rapazes das famílias da região estão em combate, há medo, busca-se aquilo que o deus retratado mostra como o maior valor de sua criação: a esperança.

E o que mais poderia dar esperança, em meio a medo e morte, do que uma aparição da mãe de Jesus?

Com todos esses ingredientes, Peixoto teve, repito, a ousadia de lançar em pleno centenário das aparições um livro que mexe de forma muito elegante e poética com uma das maiores marcas de Portugal do século XX, que viu a pequena vila se transformar em um centro de peregrinação mundial, que debateu e ainda debate exaustivamente a veracidade, o segredo, as revelações supostamente apocalípticas.

Fátima, um nome de origem árabe, dado a uma aldeia obscura no centro do pequeno país, tornou-se um nome próprio português por excelência. Maria de Fátima é o nome de milhares e milhares de mulheres em Portugal e no Brasil. Uma menina nascida em 13 de maio, como minha irmã, em uma família portuguesa, como é a minha, não tinha outro destino a não ser receber esse nome.

Peixoto, que já ganhou diversos prêmios, entre eles o Oceanos (o antigo Portugal Telecom) de 2016, é um escritor para ser lido e acompanhado. Tem uma prosa deliciosamente poética, maneja bem demais as metáforas e consegue fazer com que você acredite piamente nas reflexões um tanto metafísicas de uma menina de 10 anos. Esse é o encanto da literatura, ora pois!

 

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