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Sobre Morreste-me, in Estadão, Brasil

02.08.20

 

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"Quem passou pela Flip em 2012 se lembra da comoção que foi a leitura integral que o escritor português José Luis Peixoto fez de Morreste-me num evento paralelo do festival literário. Ele nunca tinha feito isso, nem pensado em fazê-lo. O livro, o primeiro que escreveu, é a sua tentativa de elaborar o luto após a morte de seu pai. Escrito aos 21 anos, em 1996, e publicado em 2000, o breve, profundo e poético relato só chegou às livrarias brasileiras em 2015, quando ele já era considerado um dos principais autores de sua geração.

No livro, o filho conversa com o pai “impossivelmente morto” enquanto relembra os últimos momentos vividos em casa ou no hospital e fala sobre o presente, ou seja, o regresso a uma 'terra cruel' – 'A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse'. Peixoto não teve medo de mergulhar nesse luto, de se apresentar menino diante de sua dor e de se mostrar homem diante da situação do pai: 'Pai, que nunca te vi tão vulnerável, olhar de menino assustado perdido a pedir ajuda. Pai, meu pequeno filho'. Ao escrever, pensar e falar sobre a morte, o autor faz uma reflexão sobre a vida, o amor, o tempo. O livro representa, também, a passagem para a vida adulta e o começo de uma nova história – a de um jovem que diante da dor extrema se descobre escritor, algo que esse pai jamais imaginou.

Em entrevista à época do lançamento, Peixoto classificou a literatura como uma cartografia invisível. 'Por meio dela, tentamos encontrar sentido, referências para não nos perdermos do essencial. Ela dá proporção, equilibra a memória, limpa o pensamento.' Para escritores e para leitores.

Morreste-me condensa temas que o autor vem tratando em sua obra. É triste e é bonito. Uma leitura delicada em tempos de lutos sem fim."

 

Maria Fernanda Rodrigues

 

joseluispeixotoemviagem.com

joseluispeixoto.net

 

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Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto, in Público, setembro 2019

10.10.19

José Luís Peixoto e o peso do nome Saramago

TEXTO DE JOSÉ RIÇO DIREITINHO

 

Autobiografia é um romance que desafia o leitor ao diluir fronteiras entre o real e o ficcional, entre espaços e tempos, entre duas personagens de nome José, um jovem escritor e José Saramago. Este é provavelmente o melhor romance de José Luís Peixoto.

 

O título, Autobiografia, e a designação “romance” inscrita, logo abaixo, na capa do mais recente livro de José Luís Peixoto (n. 1974), parece querer alertar o leitor para o jogo de ilusões que aí vem. E a leitura das primeiras páginas confirma essa ideia: há um escritor José [Saramago] e um aprendiz de escritor também chamado José [Luís Peixoto, pode o leitor presumir]. Ao fim de algumas páginas, percebe-se que é um livro que desafia a atenção de quem o lê: o jogo com os nomes, a mudança abrupta de cenas, as fronteiras ténues entre narradores e personagens, e adivinha-se que também haja essa diluição de limites entre espaços e tempos. A estrutura pouco comum, quando comparada com as dos livros anteriores do autor, torna de imediato Autobiografia um livro singular na obra de José Luís Peixoto.

 

“Esse começo foi consciente no sentido de mostrar que o livro vai ser assim até ao fim”, confirma Peixoto em conversa com o Ípsilon. “É uma espécie de manifesto desta minha proposta narrativa. Este é um romance que exige tempo de envolvimento”. Com o prosseguir da narrativa, Autobiografia vai-se alargando em várias dimensões – até porque um dos assuntos do livro é a escrita de uma biografia de Saramago pelo jovem aprendiz de escritor, José. Biografia que, à semelhança da “proposta” autobiografia de Peixoto, se vai tornando também ela ficcional.

 

José Saramago surge neste romance como uma figura de ficção alicerçada no real. Como personagem origina o jogo (ou os jogos) a que o autor se propõe, assim divergindo do caminho de reconstituição biográfica (que talvez fosse o mais natural e esperado pelos leitores). José Luís Peixoto, que afirma que “foi um grande esforço escrever este livro, uma grande luta”, conta um pouco sobre as opções que teve de fazer ao longo do tempo em que o escreveu (pouco mais de um ano): “Ao longo do processo de escrita, o livro teve dois ou três momentos em que tive de reavaliar tudo, de reorganizar toda a narrativa. Um dos princípios que me pareceu que poderia defender o romance ao nível desta questão da presença da personagem Saramago era integrá-la num jogo. E fazer com que o livro se movimentasse nesse campo da construção literária e não tanto no da reconstituição histórica da sua vida. Contudo, a dimensão histórica também é importante, e por isso, para lá das questões do enredo, da forma como a narrativa flui, dos anacronismos, houve depois uma outra construção, a do autobiográfico e do ficcional. O possível conhecimento que os leitores têm da vida do José Saramago, e da minha, em maior ou menor grau, também contribui para a leitura do livro. O simples facto de saberem que eu me chamo José como uma das personagens, e que o título é Autobiografia, já direcciona para uma forma de leitura. Mas depois há outras. Se o leitor souber, por exemplo, que eu ganhei o ‘Prémio Saramago' próximo da idade daquele jovem escritor, e que o ganhei com o meu primeiro romance.” E Peixoto prossegue dizendo que todos os seus livros, de uma maneira ou de outra, nem sempre evidente, falam um pouco de si, que vai deixando dados autobiográficos por necessidade: “Este livro tem muito de mim porque essa era a minha proposta. Mas que pode não ser tão evidente como as pessoas pensam. Por vezes o que as pessoas julgam ser mais autobiográfico não o é assim tanto. Outras coisas, eventualmente mais excêntricas, podem por vezes ser decalcadas da minha realidade. Isto tem a ver com a forma como eu depois valorizo o meu trabalho. Preciso de deixar essas coisas escritas, essas informações, para depois sentir que ele me diz respeito.”

 

Pacheco

A questão do aproveitamento (neste caso de uma coincidência) dos nomes das personagens feito por Peixoto ao longo do livro, não é um facto novo. Já no seu primeiro romance, Nenhum Olhar, há uma história em duas gerações, com um pai e um filho de nome José; e, mais tarde, em Cemitério de Pianos, há várias gerações que se misturam no tempo da narrativa, e em que pais e filhos se chamam ‘Francisco’. O autor reconhece esse seu recurso estilístico: “Funciona aqui como um jogo, e compreendo que por vezes possa não ser muito claro e que possa mesmo gerar alguma confusão, mas essa é uma das propostas que quis que estivesse presente. Até ao final da narrativa há momentos em que as coisas mudam bastante, em que há anacronismos, uma espécie de rasteiras para um leitor que esteja mais habituado a leituras cronológicas.”

 

Uma história curiosa ainda sobre nomes: num anterior livro de José Luís Peixoto, Abraço, há um texto intitulado “Pacheco”. Esse texto fala das muitas vezes em que lhe trocaram o nome, e há nele uma fotografia de uma página autografada com uma dedicatória com a data de 1997: ‘Para José Luís Pacheco, com a simpatia do José Saramago’. Peixoto conta, com um sorriso: “Essa foi a primeira vez em que estive na presença do Saramago, em que lhe pedi para me autografar o Memorial do Convento”.

 

Fazer de José Saramago uma personagem nuclear de um romance, pode não ser uma tarefa fácil se a forma escolhida for a da ficção: dialogar com a sua figura, com tudo o que ela carrega como representação social e literária, com as expectativas dos leitores, com a complexidade de leituras da sua obra. José Luís Peixoto confessa que tudo isto tornou o livro bastante trabalhoso. E conta como chegou à ideia do romance: “Tudo começou a partir de um conto que publiquei numa revista. Era um conto que tomava a história de D. Pedro e de Inês de Castro como eixo. A partir de certa altura, pensei escrever outros contos que tivessem como centro algumas personagens importantes da História de Portugal. Comecei a listá-las. E já na contemporaneidade a personagem que me pareceu mais adequada foi o Saramago. Seria uma personagem diferente porque eu o tinha conhecido. A ideia foi crescendo, e acabei por abandonar esse livro de contos. Tinha nascido a ideia de escrever um romance que integrasse o José Saramago como personagem central, não quer dizer que seja a principal. Partindo dessa ideia tudo se foi construindo aos poucos. O título só apareceu a meio da escrita do livro.”

 

 

Normalmente quando se escrevem romances temos fantasmas, imagens na neblina, imagens dos leitores que o vão avaliar. Neste caso eu tinha o rosto da Pilar

José Luís Peixoto

 

 

A linguagem

Para além de Autobiografia ter um tipo de arquitectura narrativa pouco comum nos romances anteriores de Peixoto, também a linguagem revela um trabalho diferente, quase diria mais cuidado e apurado. Na preparação deste livro, o autor leu tudo o que lhe faltava ler na obra de José Saramago. Não admira, portanto, que algum do ritmo desses romances por vezes faça assomo em Autobiografia, como se houvesse ali um ajustamento a fazer, mas é sobretudo na atenção ao pormenor, como se o olhar se fosse aproximando do objecto ou da acção, que se nota a diferença. “Não páro de ler enquanto escrevo. Abraço até as influências que então me chegam. Escolho as leituras em função do que estou a escrever. Pode vir daí uma certa musicalidade que se procura. Agiliza as coisas”, diz José Luís Peixoto. “Com este livro decidi desde muito cedo não fazer um pastiche da escrita do Saramago. Ainda assim, há certas escolhas, certos princípios, certos valores da escrita, que dificilmente não são absorvidos.”

 

Mas há ainda mais a considerar: uma espécie de hierarquia que Peixoto estabelece para os seus livros, e que dessa forma definem o nível de exigência da escrita. “Não é uma hierarquia de importância, mas os romances são os pilares do caminho que eu tenho feito. Se eu tiver que pensar nalguma coisa da minha vida, eu localizo-a sempre em relação aos romances que publiquei, a pessoa que eu era quando os escrevi. Os romances têm para mim esse significado pessoal de exigência de evolução, e de uma tentativa de balanço. O que nem sempre acontece nos outros livros, que cumprem outras funções, e têm outras exigências que nem sempre são tão exigentes como as dos romances”. E acrescenta: “Há um caso engraçado com o livro No Teu Ventre. Eu fiz finca-pé na editora para que aquilo fosse considerado novela, e é isso que aparece na capa. Mas depois, à medida que as pessoas foram escrevendo sobre o livro, foram-se referindo a ele como romance. Hoje também já o considero um romance”.

 

Mas não é apenas a forma escolhida para a narrativa que influencia muito os livros de Peixoto. Também a proximidade ao assunto, a natureza das personagens, a distância entre realidade e ficção, entre o concreto e o imaginado. “Há coisas que fazem muita diferença. Por exemplo no livro Galveias: eu já tinha escrito sobre esse espaço, mas sem o nomear, usando um nome ficcional. Não se consegue escrever certas coisas se não se tiver lá aquele nome concreto. O facto de o nomear [ao lugar de Galveias, onde nasceu] provoca que eu escreva de maneira diferente sobre ele. Acho que se passou o mesmo com Autobiografia, o peso do nome Saramago como personagem fez-me também escrever de outra maneira, foi quase uma obrigação”.

 

Para José Luís Peixoto havia uma espécie de “sombra”, um fantasma, a pairar sobre a ideia de escrever um romance em que José Saramago entrasse como personagem. O seu nome era Pilar del Río. “A Pilar soube do livro antes de eu ter escrito a primeira palavra. Esse foi um lado muito sensível. Isso era para mim muito importante. Aliás, a própria Pilar é referida no romance como personagem. E há um aspecto curioso, pois no dia em que conheci o Saramago conheci também a Pilar. Eu tinha de saber gerir isso. Normalmente quando se escrevem romances temos fantasmas, imagens na neblina, imagens dos leitores que o vão avaliar. Neste caso eu tinha o rosto da Pilar. Para mim foi um alívio enorme quando ela leu o livro e se mostrou satisfeita. Ela sabia que o livro é um artefacto literário e que aquele Saramago é uma personagem, que apenas sugere uma possibilidade de Saramago”. Mas Peixoto não sente que em algum momento, o facto de vir a ter Pilar como leitora do livro, o tenha constrangido ou condicionado. Ela nunca lhe disse o que esperava do romance. “Só quando o terminei ela soube alguma coisa sobre o livro. Imprimi-o e entreguei-lho ainda antes de o enviar a quem quer que fosse”.

 

(Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto)

 

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Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto

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Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto, in Visão, julho 2019

30.09.19

Saramago duplicado no livro "Autobiografia", de José Luís Peixoto

TEXTO DE LUÍS RICARDO DUARTE
 

O Prémio Nobel da Literatura português transforma-se em personagem de um romance que também é uma homenagem. No livro "Autobiografia", de José Luis Peixoto, literatura com literatura se paga.

 

Ao receber o Nobel da Literatura, em 1998, José Saramago tornou-se inevitavelmente a grande referência das letras portuguesas, o que se traduziu em três grandes eixos: a celebração da liberdade do narrador, que não poucas vezes deriva para reflexões e assuntos paralelos; a vontade de contar uma boa história, presente na sua obra desde o primeiro romance; e o reencontro com uma certa portugalidade, menos épica do que humana. Para as novas gerações de escritores, a importância do autor de Memorial do Convento reforçou-se com o prémio a que deu nome, atribuído pela Fundação Círculo de Leitores. José Luís Peixoto recebeu-o na segunda edição, em 2001, e agora, no seu novo livro, presta-lhe tributo. Homenagem sem ser hagiografia; Autobiografia é literatura que se alimenta de literatura.

 

Essa dimensão de diálogo é o que, de início, mais se destaca no romance. Num entendimento da literatura enquanto jogo (no tempo, nos artifícios e nos símbolos), Autobiografia afirma-se como um labirinto de espelhos, no qual se refletem várias obras de José Saramago. Como nas pinturas cubistas, prestando atenção a determinados pormenores, identificamos claramente a essência de Todos os Nomes, Manual de Pintura e Caligrafia, O Homem Duplicado, Ensaio sobre a Cegueira ou História do Cerco de Lisboa. E não o dizemos só por o nome de todas as personagens ser retirado desses e de outros romances, mas porque se soube fixar o coração dessas obras e encadear os seus artifícios fundamentais num enredo que ganha vida própria. É uma leitura pessoal e original do legado saramaguiano, que se funde com o universo e as obsessões que, desde a estreia, com Morreste-me, José Luís Peixoto tem vindo a perseguir.

 

Autobiografia é, ainda, a revisitação de um célebre conto de Jorge Luís Borges. Como em O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, um escritor mais velho depara com outro mais novo. A tarimba de um contrasta com a angústia do outro. Em Lisboa, no final dos anos 90, Saramago caminha para a consagração, enquanto o outro José não consegue acertar com o segundo romance. A convite do editor, aceita escrever uma biografia do futuro Prémio Nobel. Os seus destinos estão condenados a confundir-se. Ao refletir sobre os caminhos da criação, José Luís Peixoto recria igualmente os seus tempos de aspirante a escritor em Lisboa, convocando para a narrativa a sua geografia afetiva, dos Olivais a Cabo Verde, confundindo ainda mais as fronteiras sempre ténues entre realidade e ficção, vida e obra. E com isso talvez se perceba melhor o sentido do título, Autobiografia. Dentro deste livro vivem todos os escritores do mundo.

 
 
(Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto)
 

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Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto

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Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto, in Diário de Notícias julho 2019

30.09.19

Saramago cabe num romance? José Luís Peixoto fez a experiência

TEXTO DE JOÃO CÉU E SILVA

 

José Luís Peixoto tem novo romance, Autobiografia. Uma poderosa ficção em que o autor mergulha no universo de José Saramago e utiliza o escritor como coprotagonista.

erá que José Saramago cabe num romance? A pergunta pouco feita pelos escritores portugueses é respondida nesta sexta-feira por José Luís Peixoto, autor de Autobiografia, um romance em que o Nobel da língua portuguesa existe como personagem estruturada. Peixoto, que vem embalado pelo romance Galveias - uma narrativa bem regionalista que chegou ao Japão, onde foi traduzido recentemente, e é um sucesso no Brasil -, deixou-se de medos e captou numa história com dois Josés: um escritor e um pretendente à mesma profissão.

As trezentas páginas que enredam os dois coprotagonistas, o José aspirante a escritor e o José Saramago, surpreendem e José Luís Peixoto atinge o nível que seria exigível a um dos (demasiados?) autores da geração 2000.

Esta é uma poderosa ficção em que o autor mergulha no universo de José Saramago e utiliza o escritor como coprotagonista. Uma espécie daquilo que o Nobel fez com o heterónimo de Fernando Pessoa em O Ano da Morte de Ricardo Reis e que irá surpreender pela habilidade literária com que José Luís Peixoto puxa até ao fim o fio da história.

Um desafio que o próprio Saramago fizera ao afirmar que queria colocar o Convento de Mafra num livro e o fez em Memorial do Convento, a obra que, segundo Eduardo Prado Coelho, lhe aumentou a "base social de apoio" fora das crónicas, de atitudes ideológicas e romances à esquerda anteriores.

Peixoto faz o mesmo, pega em Saramago e usa-o num romance sem receio do desafio.

José Luís Peixoto tinha um problema: é que José Saramago sempre escreveu livros que surpreendiam pelo seu coração criativo. Ora quebrava a Península Ibérica ora cegava os habitantes do mundo. Eram histórias que o leitor não esperava nem concebia como possíveis.

Como contornar essa capacidade de Saramago? A leitura de Autobiografia mostrará que Peixoto se instala num dos romances do Nobel para levantar ao contrário o edifício: O Homem Duplicado. Tal como o protagonista desse romance, Tertuliano Máximo Afonso, irá ver convergir duas personalidades numa única. Mas O Homem Duplicado não passa de uma muleta invisível e logo esquecida quando se fecha a leitura de Autobiografia, porque as personagens de Peixoto têm vida própria. Apesar de o escritor piscar os olhos a alguns dos nomes que o Nobel tornou conhecidos na sua obra.

Personagens à linha nos romances de Saramago

Há em Autobiografia um editor chamado Raimundo Silva como o revisor de História do Cerco de Lisboa, uma Lídia como a de O Ano da Morte de Ricardo Reis, um Mau-Tempo como o de Levantado do Chão ou um Bartolomeu como o de Memorial do Convento. Há uma Rua de Macau como aquelas em que os pais de Saramago alugavam quartos no início da sua vinda para Lisboa e muitas outras referências ao universo Saramago. Peixoto descreve o escritor e a mulher, Pilar del Río, como se comportavam de verdade.

Recupera as outras duas mulheres, Ilda e Isabel, e justifica muito da existência delas com Saramago por breves e importantes momentos definidores da sua personalidade. Refaz alguns passos do escritor com muita realidade, como nas impagáveis viagens de avião. Contudo, é em quatro parágrafos no fim da página 61 e toda a 62 que capta o ser Saramago na sua plenitude, quando descreve a forma como o escritor acorda e vai esquecendo os pensamentos noturnos.

Peixoto evita semelhanças com as particularidades da escrita saramaguiana, mesmo que de vez em quando ceda para satisfazer aquela que poderá ser a vontade do leitor ao pegar neste livro: ler um pouco à Saramago. Mesmo que a ambiência do romance faça recordar frequentemente alguns dos tiques narrativos do escritor, bem como o modo como interrompia a ação para que o narrador repusesse a ordem, José Luís Peixoto divorcia-se de qualquer facilitismo e Autobiografia é apenas dele. Porque é capaz de se libertar do peso do Nobel e criar uma narrativa muito sua, que até rivaliza com a envolvência dos romances de Saramago.

A leitura de Autobiografia irá despertar nos leitores de Saramago muitas das memórias que têm sobre os seus romances e é essa virtualidade que também engrandece o romance de José Luís Peixoto.

Após Autobiografia valerá a pena perguntar: espera-se hoje por algum romance de um dos novos autores portugueses, os da geração 2000, como se aguardava por um José Cardoso Pires ou um António Lobo Antunes - falemos só destes dois - nas duas décadas anteriores à passagem do milénio? Com o leitor ansioso e a passar na livraria à espera de se confrontar com mais um mito literário. A resposta é não, afinal são poucos os novos autores capazes de preencher um romance com a arte exigida pelo leitor. A surpresa chega inesperadamente às livrarias nesta sexta-feira com o romance Autobiografia, de José Luís Peixoto.

Argumento de Autobiografia em poucas palavras

Para evitar desvendar totalmente o novo romance de José Luís Peixoto, deixa-se aqui a informação que a editora Quetzal já revelou sobre Autobiografia: "Um jovem escritor, José, é incumbido de escrever a vida do consagrado escritor, José. Este é o ponto de partida do livro que marca o regresso de José Luís Peixoto ao romance (...). Autobiografia é a história dentro da história, um romance que junta o autor ao mais reconhecido dos escritores portugueses, José Saramago (...). Na Lisboa de finais dos anos noventa, um jovem escritor em crise vê o seu caminho cruzar-se com o de um grande escritor. Dessa relação nasce uma história que mescla realidade e ficção, um jogo de espelhos que coloca em evidência alguns dos desafios maiores da literatura."

(Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto)

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Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto

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Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto, in Jornal de Letras, julho 2019

28.07.19

UM NOTÁVEL TEMPO NARRATIVO

Miguel Real

 

 

No futuro, Autobiografia talvez se venha a constituir como o melhor romance de José Luís Peixoto (JLP) publicado até 2019, não por conter José Saramago e Pilar como personagens, não por inovar estilisticamente face à obra anterior, mas pelo notável trabalho sobre a categoria de tempo narrativo, que, deveras, ainda que firmado sobre o tempo real, especificado no texto com algum pormenor, assume a função maior de organização estrutural do romance.

 

De facto, o registo da escrita de JLP permanece igual: um cruzamento original entre um explícito realismo (nome de ruas, bairros, descrição física e psíquica de personagens, origem geográfica ou étnica destas, profissões, condições familiares…) e um lirismo descritor de situações sociais labirínticas que, contra a vontade das personagens, as arrastam para o fracasso, um fracasso descrito de um modo fatal, inevitável, ainda que com palavras suaves, como se fosse próprio do homem não realizar-se. O lirismo, em JLP, reside na impossibilidade de se realizar o que deveria ser realizado, lançando as personagens num jogo mental não trágico de compensação e substituição.

 

Bucelas, Bairro da Encarnação e Bairro das Colónias em Lisboa, Pangim-Goa, Santo Antão-Cabo Verde, Quinta do Mocho-Sacavém e Lanzarote constituem-se como as bases do realismo de Autobiografia. Saramago/Pilar, José/Lídia, Bartolomeu de Gusmão (lembram-se?), Fritz e os pais, Mãe de José são, com excepção do primeiro par, seres fracassados, que parecem arrastar-se num tempo de decadência das suas vidas (Bartolomeu, Fritz, Mãe de José), que igualmente aprisiona as personagens jovens (José, Lídia, Domingues), incapazes de criar um tempo realizador novo.

 

O tempo narrativo nasce da inter-relação entre os momentos da existência das personagens, formando um puzzle, no qual, porém, um novo momento temporal da narração não só condensa todos os momentos e factos narrados anteriormente como revela um sentido antes oculto à história narrada, como se, em cada capítulo, uma outra estória estivesse a acontecer e o romance avançasse por camadas sucessivas. Não se trata de cronologia, aqui totalmente subvertida, não se trata de continuidade ou de sucessividade narrativa (não existe um fio de ligação senão que são sempre as mesmas personagens, estas porém evidenciadas coleidoscopicamente, como se em cada capítulo brilhasse apenas uma vertente), mas de acumulação de acontecimentos, como se fossem estratos geológicos uns sobre os outros. A estrutura temporal de Autobiografia é, assim, um tempo de acumulação de acontecimentos cuja presumível unidade ou fil rouge só pode ser conferido pelo leitor. É a grande participação do leitor, prestar unidade ao que é mostrado multiplamente, detectar o todo onde só se vê partes. Autobiografia exige, assim, um leitor nada preguiçoso, aliás, convidado pelo narrador a participar, já que em certos momentos, fundem-se narração da realidade exterior e a própria realidade exterior, narrador e leitor.

 

Não é de admirar, portanto, que consoante o leitor privilegie uma personagem (por exemplo, Bartolomeu, retornado de Angola, Fritz de família com origem em Goa, depois Lourenço Marques, depois Viena de Áustria; ou Lídia, de Santo Antão, depois Quinta do Mocho…), assim tenha uma visão geral diferente do romance: o de um Império a desfazer-se (Fritz, que “cega” no retorno a Goa), a do “retornado” africano como um faz-tudo exilado em Portugal, capaz de reconstruir a vida, de enriquecer de novo a partir de diamantes trazidos enfiados no ânus; a de Lídia cabo-verdiana, serviçal dos portugueses, arrastada na miséria, sem nunca perder a doçura e a alegria; a de Domingos, cabo-verdiano que sobrevive pela violência…).

 

No centro desta teia, emerge Saramago e, acessoriamente, Pilar, representada de um modo passivo e não como o intenso amor maduro do escritor (e é pena!). No centro do romance está Saramago e no centro desta personagem está um segredo, que o une a José, o jovem escritor de um primeiro romance, que anseia por escrever o segundo. O editor  – Raimundo Benvindo Silva, que JLP eleva de revisor e autor a editor –, diferentemente, propõe-lhe escrever uma biografia de Saramago, que José aceita hesitantemente.

 

Não devemos revelar o “segredo”, nem devemos revelar se, afinal, José escreve ou não a biografia de Saramago, já que seria anular o efeito suspensivo que o autor imprimiu a Autobiografia – duas revelações só feitas perto do final. E, no caso do título, nem nós temos a certeza qual o verdadeiro autor de “autobiografia”, se Saramago, que assim teria inventado a personagem José para se auto-retratar, e todo o romance seria seu enquanto personagem, se de José, que assim escreveria um romance a narrar a terrível passagem entre o primeiro e o segundo romances. Quem é o autor implícito de Autobiografia, já que o explícito é JLP? A resposta a esta questão, que só pode ser pensada a partir da leitura dos momentos finais, decide a totalidade da interpretação e do sentido do romance. Comprovando a noção de tempo acumulativo (um momento sobre outro, mas não necessariamente um momento causado e derivado do anterior), da resposta que o leitor deduzir, decorrerá o sentido total de Autobiografia.

 

Não hesitamos em qualificar Autobiografia como o melhor romance português publicado até ao verão de 2019.

 

(Crítica do romance Autobiografia, de José Luís Peixoto)

 

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Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto

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Kúltura Pravda, Janeiro 2018

31.01.18

Kniha týždňa: Sonáta večnej rodiny

Katarína Mihalkovičová

 

 

Za posledné tri roky sa na slovenskom knižnom trhu objavili tri diela súčasných portugalských autorov (ale aj preklady poviedok či po portugalsky píšucich klasikov).

 

V roku 2015 vydal Tatran titul Maliar pod kuchynským drezom od Afonsa Cruza, imaginatívne rozprávanie inšpirované historickými udalosťami s náhľadom na Portugalsko v čase druhej svetovej vojny.

 

V tom istom roku vyšla v edícii portugal_sk Portugalského inštitútu ochutnávka hravej prózy oceňovaného autora Gonçala M. Tavaresa (dvojjazyčné vydanie jeho troch diel Pán Valéry a logika, Pán Henri a encyklopédia, Pán Juarroz a myslenie pod spoločným názvom Pán/O Senhor Valéry/Henri/Ju­arroz), a v roku 2017 nasledoval v tej istej edícii román Josého Luísa Peixota Cintorín klavírov v preklade Lenky Cinkovej.

 

Ide o generáciu autorov narodených v prvej polovici 70. rokov: vyrástli po revolúcii a ich literárne dospievanie sprevádzala dominancia Josého Saramaga, ktorá vyvrcholila jeho Nobelovou cenou za literatúru v roku 1998. Prvé diela, prozaické, básnické i dramatické, publikovali po roku 2000 a každý z nich svojsky nadväzuje na južanský lyricko-magický a realisticko-melancholický charakter portugalskej literárnej tvorby.

 

Peixoto je najmladší z troch menovaných a už za svoj debutový román Nenhum Olhar získal Cenu Josého Saramaga. Saramago ho vtedy ohodnotil slovami: „Peixoto je jedným z najprekvapi­vejších objavov v portugalskej literatúre. Tento chlap vie písať a bude pokračovateľom veľkých spisovateľov.“

 

Zlomový kontakt so smrťou

 

Peixoto prišiel v máji 2017 knihu osobne uviesť do Bratislavy. Jeho zjav – potetovaný svalnáč, ktorý v minulosti písal texty pre heavymetalovú skupinu – je v sympatickom protiklade s hĺbavým, ba až nežným tónom rozprávania v jeho knihe. Úvodným impulzom k napísaniu Cintorína klavírov bola smrť jeho otca pred dvadsiatimi rokmi. Skonal len hodinu nato, ako sa mu narodilo vnúča.

 

Peixoto zbieral materiál ďalších desať rokov, alebo ho skôr nechal v sebe dozrievať (kniha vyšla v Portugalsku v roku 2006). Okrem autobiografických prvkov použil meno a okolnosti smrti maratónskeho bežca Francisca Lázara, jeho život a úlohu v rodinnej kronike však len voľne dotvoril.

 

Zo stolárskej dielne svojho otca urobil cintorín hudobných nástrojov – miesto, kde sa uchovávajú a opravujú staré klavíry – no treba vopred konštatovať, že potenciál klavíra ako inštrumentu, ktorý má svoju hodnotu a rozmer a môže, ale aj nemusí byť prístupný všetkým, využil minimálne. Klavír občas zaznie a potom zase stíchne, no aspoň v názve vypovedá viac, a tu čitateľovi ponúkam túto interpretáciu: jemným dôkazom o portugalskej túžbe po kráse a vyššom umeleckom cítení je, že tam, kde by sa napríklad slovenský román volal možno Stolárski majstri, Peixoto predstavuje Cintorín klavírov.

 

Meditatívny rozbor narodenia a smrti, hĺbkový profil vzťahu muža a ženy, od vzplanutia až po rozklad lásky, vrchol a kríza existencie rodiny, to sú hlavné témy jeho trojgeneračnej prózy. Na začiatku je pokojná rodina, zomknutá v očakávaní neodvratných udalostí, a dva telefonáty: prvý oznamuje narodenie vnúčaťa, druhý smrť starého otca.

 

Konštrukčný hlavolam

 

Slovami autora: táto kniha sa nebude páčiť ľuďom, ktorí majú radi veci pod kontrolou. Je neusporiadaná a nedá sa vždy vyvodiť súvislosť medzi jednotlivými postavami a udalosťami. Otázne je aj to, či súvislosti, ktoré sa vyvodiť dajú a sú koniec koncov logické, boli zamýšľané tak, aby do seba zapadali, alebo išlo skôr o spontánny popud a zámer dosiahnuť podobnosť opakujúceho sa cyklu.

 

Repetícia je slovo, ktoré sa vám pri čítaní neraz vynorí v myšlienkach. Peixoto totiž experimentuje. Opakuje slová, vety, časti viet, vracia sa k situáciám, nie nutne s tými istými postavami, práve naopak, vyžíva sa v tom, že čitateľ miestami netuší, kto príbeh rozpráva.

 

Prvým „ja“ v príbehu je mŕtvy otec a starý otec, ktorého hlas je odkázaný na spomienky a pozorovanie rodiny ako vo výklade pred sebou.

 

Ďalšie „ja“ je ešte tajomnejšie, pretože takmer až do polovice knihy sa zdá, že ide o mladšiu verziu toho istého ja, ktorým je mŕtvy otec a starý otec. V bode, kedy je už nemožné roztriediť rozprávanie na kôpky s jednotlivými niťami príbehu, sa z neho vykľuje vnuk.

 

Tretím „ja“ je bežec Francisco, syn mŕtveho otca a starého otca a otec ešte nenarodeného vnuka, ktorého asociatívny sled myšlienok sa odohráva s ubiehajúcimi kilometrami maratónu.

 

Máte v tom zmätok? Vedzte, že Peixoto sa absolútne nenamáha meniť štýl alebo jednotlivé úseky rozprávania od seba oddeľovať inak než prázdnym riadkom či spomínaným počtom kilometrov. Paralelne rozohráva viaceré ľúbostné vzťahy členov rodiny, od zoznámenia cez prvé dotyky po tehotenstvo, a to všetko sa svojím melancholickým tónom nápadne podobá na kontemplatívny nádych jeho ľútosti nad neskoršou surovosťou a smrťou. Zámerne narúša akýkoľvek náznak chronológie a do vnútra svojich postáv i do okolia nahliada buď spomalenou optikou, alebo vo vlastnej alternatívnej časovej rovine. "Čakal som v čase, v ktorom som starol len ja.“ „Čas o mne nebude vedieť. Budem iný.“

 

 

Ženy

 

Táto naoko nedbalá rozhádzanosť môže byť vnímaná aj ako systém komunikácie s čitateľom, správou o tom, ako zakaždým ide o návrat späť, o rovnaké chyby, opakované emócie, nemožnosť odvolať svoje hriechy, a napokon, nemožnosť sa zmeniť. Muži sa postupne z príbehu vytrácajú a čoraz prítomnejšie sú ženy. Jedna je romantická, druhá priberá pod ťarchou manželovej nevery, tretia je vášnivá, štvrtá chladná, no všetky majú „oči, hlas a sny“.

 

Matka – „moja žena“ – trpiteľsky znáša buchnáty od manžela, vyhnanie poloslepého syna (ktorý je, mimochodom, najzaujímavejšou postavou, hoci jeho vnútorný svet nám ostáva skrytý), smrť muža a trápenie dcér, až kým sa sama bezmyšlienkovite nedopustí zlomu svojho uhladeného držania, čo je pre ňu zároveň aktom pomsty voči strate citov a snov.

 

Domáce násilie je do rodinných vzťahov schválne zapracované ako ich neoddeliteľná súčasť. Stereotypný výjav popudlivého muža opojeného alkoholom a naštartovaného tichým ženiným pohŕdaním strieda kajúcnosť a sebatrýznivé spytovanie svedomia. Príkladom interaktívnosti textu je dialóg mŕtveho starého otca s trojročnou vnučkou, ktorá mu vyčíta, že sa čitateľom ukazuje v dobrom svetle, no jeho rodina si ho takého nepamätá. Jednou z Peixotových hier je aj ľúbostný trojuholník jedného z rozprávačov s dvoma ženami bez mena, pretože takto je v spleti milovaní v cintoríne klavírov, tehotenstiev a svadieb v príbehu ešte zložitejšie určiť, o ktorý zo vzťahov v skutočnosti ide.

 

A je tu vôbec nejaká skutočnosť? „Keď budeš umierať, bude sa ti snívať, že žiješ. A kto môže povedať, či si mŕtva a sníva sa ti, že ešte žiješ, alebo či ešte žiješ a iba sa ti sníva, že si zomrela?“

 

Peixoto napísal oduševnenú „rozkladačku“ ľudského života a chce, aby sme premýšľali spolu s ním. Ak sa zhodneme na tom, že človek je na svete preto, aby sa narodil, miloval a zomrel, potom je jeho román o človeku. Ak usúdime, že narodenie, láska a smrť majú zmysel len vtedy, keď si človek uvedomuje, čo je medzi tým, potom je jeho román o tom, čo je medzi tým.

 

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Jornal de Letras, Novembro 2017

27.12.17

ABAIXO, TEXTO DISPONÍVEL PARA LEITURA. 

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'O caminho também é um lugar'

 Manuel Halpern 

 

Cinco anos depois de Dentro do Segredo, o seu livro dedicado à Coreia do Norte, o escritor volta à ‘literatura de viagens’ com O Caminho Imperfeito. Histórias de uma outra Ásia – a Tailândia, igualmente recôndita -, de um submundo pernicioso e cru. Mas também uma viagem ao mundo interior do próprio escritor, com uma forte componente autorreflexiva e autobiográfica. O JL entrevista o autor, publica a crítica de Miguel Real àquele último livro e quatro poemas inéditos de quem também na poesia se distingue mas nos últimos anos não a tem dado a lume.

 

 

Chegou da Coreia do Norte e está de partida para a Finlândia. “E se mais mundo houvera lá chegara”, o verso d’Os Lusíadas que bem se aplica a José Luís Peixoto, escritor andarilho que desbrava o que resta dos mundos ocultos nesta sociedade global, que estreitou os caminhos da Terra. Em 2012, lançara Dentro do Segredo, um olhar sobre a Coreia do Norte, o mais obscuro dos regimes. Agora escreve sobre a Tailândia, em O Caminho Imperfeito, o seu segundo livro de ‘viagens’. Mas claro que não é uma Tailândia de postal, para estrangeiro ver, mas um mundo feito de submundos recônditos crus e chocantes. Mais do que isso, neste livro em que a realidade por vezes ultrapassa ficção, há uma viagem interior, introspetiva, testamentária, que cria elos com toda a sua obra.

Nascido em Galveias, em 1974, José Luís Peixoto é um dos mais internacionais escritores portugueses contemporâneos, livros seus estão editados em mais de vinte idiomas. Entre outras distinções, recebeu em 2001 o Prémio José Saramago pelo seu romance de estreia, Nenhum Olhar, e, já este ano, o prémio Oceanos, por Galveias. Dividindo-se entre ficção, poesia e literatura de viagens, iniciou a sua carreira em 2000, com Morreste-me, seguiram-se títulos como A Criança em Ruínas (2001, poesia), Uma Casa na Escuridão (2002), Cemitério de Pianos (2006) e Livro (2010).

 

JL: O livro começa com uma descrição algo chocante. Mas talvez o que que haja de mais chocante neste livro é estar catalogado como não ficção...

José Luís Peixoto: A Tailândia é um lugar de contrastes. Todas aquelas coisas são reais e aconteceram assim. Claro que depois há uma gestão da narrativa. O livro a partir de certa altura torna-se tão diferente, que rejeita a catalogação mais fácil.

 

Teve muitos anos uma crónica no JL intitulada ‘Verdades quase Verdadeiras’. Foi um caminho que sempre o interessou? A realidade como manancial de histórias ou aqueles momentos em que a realidade ultrapassa a ficção?

 A certo momento, o livro coloca o tema da autobiografia versus ficção. Reflete sobre a eterna questão de quanto tudo é ficcional e ao mesmo tempo autobiográfico. Em alguns momentos, deu-me prazer exercitar uma certa ironia através de factos absolutos, às vezes até estatísticos, que são muito eloquentes. Quando estamos a fazer o retrato de uma realidade exótica tudo acaba por ser muito diferente do que estamos à espera. Mas o livro também se movimenta nessa dualidade do longe e do perto. Por um lado, tem essa distância cultural e de perspetiva do mundo, diferente da nossa, mas por outro lado tem momentos de grande proximidade, de retrato íntimo, autobiográfico e pessoal. O confronto entre os dois acaba por ser a concretização dos polos desse caminho.

 

Descobrem-se várias camadas, o livro são muitas coisas ao mesmo tempo. No cinema muitas vezes fazem se ficções com técnicas de documentário. Aqui faz o inverso? Isto é um ‘documentário’ transformado em ficção? Usa ferramentas da ficção para falar da realidade?

Independentemente do caráter ficcional ou não de um texto, tem de ser considerada a sua eficácia narrativa. Nesse aspecto, fiz um exercício que requer um equilíbrio de vários aspetos. O livro é um caminho. Começa num ponto e termina noutro inesperado à partida. Acho isso interessante. Todos os livros propõem um caminho. Neste caso procurei que a existência desse percurso fosse muito clara. É uma narrativa feita de muitas narrativas.

 

É levada ao extremo a ideia de que quando se faz uma viagem não conta apenas o lugar para onde se vai, mas sobretudo como tal nos afeta interiormente. Tudo alimenta a viagem. É por isso que não há a mesma Tailândia para todos?

Sob o ponto de vista da descrição da Tailândia, o livro é uma hipótese. Tentei ultrapassar o estereótipo, muito forte e alimentado pela indústria do turismo. Mas eu quis ir a outros lados e colocar lá toda a minha subjetividade. O meu olhar não é neutro, nem objetivo. Nenhum olhar o é. Este livro tem muito de pessoal. Ao escrevê-lo foi o que mais me seduziu. A crónica da Tailândia foi, de início, o que me levantava mais desafios por ser um país tão diverso, que me deixava assoberbado a olhar para tudo aquilo, mas a partir de certa altura se foi organizando.  A forma como a Tailândia me marcou, com todas as suas capacidades simbólicas, foi, porém, o que transformou este livro em algo extremamente importante para mim e com um lugar muito particular em relação a outros livros que escrevi.

 

O livro sobre a Coreia do Norte, Dentro do Segredo, relata uma viagem num estilo muito diferente.

Sim, mas com esses pontos todos de contacto, na medida que também me transformou. Há uma visão sobre o lugar não objetiva. É um encontro com o outro, com todas as interrogações que trás. Classificar este livro como não ficção cria uma responsabilidade acrescida, porque se estabelece uma ligação com a escrita jornalística, com uma certa objetividade. Torna obrigatório retratar um espaço que existe e ser-lhe fiel. Isso para mim é muito complicado. Aquilo que encontro ali, apesar de ser objetivo e verdadeiro para mim, pode não o ser para outra pessoa.

 

Quanto tempo esteve na Tailândia?

Estive cinco vezes. Períodos de três e de duas semanas. A primeira foi depois de ter estado no Festival Literário de Macau. Contava ir à China, a Hong Kong, mas aconselharam-me a ir à Tailândia. Desde aí que tenho ido todos os anos. É uma cultura fascinante a vários níveis, quer do ponto de vista histórico, quer do seu quotidiano.

 

É um livro que permite que falemos sobre tudo, como se neste caminho coubesse o mundo inteiro. Um livro que coloca grandes questões universais...

Qualquer livro faz perguntas. A partir de certa altura colocam-se-me duas questões de forma muito direta: porque escrevo e porque viajo. São duas formas de perguntar ‘para que vivo’. Pois estes são dois símbolos muito claros da minha vida. Viajar, sob o ponto de vista mais físico, e escrever, do lado da reflexão, do pensamento. Mas são duas dimensões da mesma existência. Essas perguntas estão por baixo de todas as perguntas. No fundo, o livro vai dando várias hipóteses de resposta, ligadas a temas já trabalhados em livros meus, como as questões da família, o que leva o livro nessa direcção autobiográfica. Há um momento no livro em que eu faço um balanço da minha vida e penso como seria se morresse agora. Para mim essa reflexão foi o resultado lógico das perguntas que fiz. Apesar de haver reflexões quase absolutas, aplicáveis em outras circunstâncias, o livro nunca abdica das suas referências concretas. Tal como quando o livro falada Tailândia, parte daquelas ideias poderiam ser aplicadas noutras realidades nos seus princípios. Quando o livro fala sobre mim pode também ser aplicado a outras pessoas que o estejam a ler. Sem prejuízo de pretender ser simbólico e universa l pela própria natureza da literatura essa é a sua última vontade -, o livro é bastante particular, nele falo de forma muito concreta dos meus filhos, da minha família.

 

Chega ao ponto de fazer um testamento.

Quando se está a escrever o primeiro compromisso é com o texto. Mas não se podem deixar de considerar múltiplas circunstâncias em que ele possa ser lido. Fiquei a pensar que aquele texto poderia ser lido depois de eu morrer. É sempre uma situação sensível. Mas também acho que todos os textos devem ser escritos como um testamento. São a cristalização de um tempo que nos ultrapassa. A morte é uma grande fronteira. Marca uma grande diferença sobre a perspectiva da pessoa. Os textos são sempre escritos num passado e presentes num tempo que não é sempre exatamente o seu.

Embora aspirem a ultrapassar o tempo, todos os textos são datados, porque a sua verdade é sempre a do seu tempo. Claro que a riqueza do texto pode permitir múltiplas leituras que o façam sempre atual, mas o tempo em que ele foi escrito nunca é dado irrelevante. Existe sempre um compromisso com a História, do ponto de vista do tempo, e com a Cultura, do ponto de vista do espaço. O espaço em que um livro é escrito nunca é irrelevante, mesmo que possa fazer sentido em todo o mundo e em todas as épocas.

 

De alguma forma começou a escrever por causa do seu pai em Morreste-me. Aqui revela que começou a viajar também por causa dele. Há uma espécie de fechar de círculo?

Sinto que esse tema não se fecha. Mais do que ser um círculo é uma espiral. Esse é o grande tema da minha obra. Não sei se algum dia conseguirei sair daí da questão da filiação. Começa por ser a questão do pai, mas também é a questão dos filhos. No fundo são dois lados da mesma coisa. É uma questão que encerra muitas outras, como a do tempo. Não é por acaso que afiliação é um eixo narrativo de várias religiões, até do ponto de vista civilizacional, e nos organiza o pensamento. Sinto uma tendência para tratar esse tema e, em vez de contrariá-la, abraço-a, desde sempre.

 

Na sua obra, coloca os romances e a não ficção ao mesmo nível?

Há sempre uma pressão grande para escrever romances e um preconceito em relação ao resto. Como se por não ser um romance, o livro fosse menor. Cada género tem os seus desafios e a sua importância. Gosto de diversificar, de procurar e experimentar. As lições que aprendi a escrever romances são amplamente utilizadas aqui. Do ponto de vista da construção narrativa, as diferenças entre este livro e um romance são poucas.

 

Na badana da contracapa a sua obra aparece dividida apenas entre prosa e poesia...

Quando olho para um novo projeto, não consigo ignorar o que já fiz. Mesmo que isso aconteça encontro sempre ligações. Tenho a ambição que cada livro acrescente um novo ramo, mas não ignoro o tronco. Este livro relaciona-se com outros livros meus, como o Dentro do Segredo, as crónicas, o Morreste-me, o Cemitério de Pianos (até na estrutura)... Até com os livros mais ligados ao Alentejo, como o Galveias e o Nenhum Olhar. A dimensão autobiográfica está presente em todos. Este, O Caminho Imperfeito, em certa medida é o livro da adolescência, do rock’n’roll, das tatuagens, de uma cultura popular, mas às vezes transgressora.

 

Fala de coisas sérias, mas não é muito pesado.

Tentei que fosse, sob o ponto de vista da prosa, um livro fluido, de frases simples, para uma leitura ligeira. O humor é um aspeto que ameniza muito.  Embora seja temperado com outros elementos.

 

Viaja muito devido à vida de escritor, mas ainda assim acrescenta outras viagens. Porquê?

Há uma passagem do livro em que eu digo que era sempre o último a sair das festas. Desde sempre tenho grande ansiedade por viver. Raramente recuso convites, propostas, desafios. A minha ambição é sempre experimentar mais, ver, saber, sentir, tomar o gosto a tudo. Viajar para algumas pessoas é um objetivo de vida. Também há o momento que se diz no livro em que quem não viaja está a viver alguma coisa que quem viaja ignora. O livro faz essa apologia da viagem, embora lhe reconheça alguns lados menos positivos.

 

Diz que o caminho é um sítio. Sente-se em casa quando entra no avião?

O livro faz a apologia de viajar de avião, o que não é muito comum nos livros de viagem. Porque é tido como algo artificial, que não é verdadeiramente sentido. Há algum tempo que comecei a olhar para esses não lugares. Quando se tomam muito presentes ganham características que normalmente quem está de passagem não reconhece.

 

Escreve em qualquer lado?

Escrevi este livro em muitos espaços e circunstâncias. A escrita tem diversos estágios. Alguns são mais adequados para desenvolver em movimento. Contudo, para mim, a circunstância ideal para escrever é em casa. Mas escrevo em muitos lugares. Às vezes, a escrita pode ser uma âncora de estabilidade num meio em permanente alteração.

 

Há algum sítio onde ainda queira ir e escrever?

Há vários sítios que trazem grandes questões. Tenho viajado para a Ásia. É um continente fascinante. Quando se regressa da China é impressionante ver as paisagens imensas da Mongólia, do Azerbaijão, Cazaquistão... Espero ter a oportunidade de escrever mais livros com focos noutros pontos.

 

Se abrisse um concurso para escritores irem à Lua inscrevia-se?

Seguramente. De resto, o olhar com que se vai para qualquer lugar tem que ser semelhante ao de com que se iria para a Lua. Porque se nos convencemos que os nossos preconceitos são o suficiente, não vale a pena a viagem.

 

 

  

Viagem Iniciática

Miguel Real

 

José Luís Peixoto (JLP) atingiu a idade da meia-vida e, em registo de “não-ficção” (texto da contracapa), perfez uma viagem ao fundo da sua existência, sumariada no seu último livro, O Caminho Imperfeito. Note-se que o título não indica “um” (indeterminado), mas “o” caminho, bem definido, o “seu” caminho. Ainda que profana, trata-se de uma viagem verdadeiramente iniciática já eu tem como objetivo atingir o autoconhecimento e determinar os tentáculos existenciais que têm ligado a sua vida aos outros e ao mundo. Não se trata de ma viagem de prazer, ou uma viagem turística, ou uma viagem encomendada para uma repostagem, mas uma viagem ao fimou ao fundo de si próprio e, por via do caminho percorrido, desenvolver e atingir um autoconhecimento sintético e iluminante sobre a sua vida.

 

É neste sentido que, neste seu novo livro, a viagem, mesmo profana, é iniciática, busca fins de conhecimento, não materiais, não históricos, mas, seguindo a antiquíssima divisa de Sócrates, de busca de si mesmo. Porém, como Sócrates, o resultado atingido e o caminho percorrido como conteúdo concreto da viagem não comprazeram totalmente o autor/ narrador (ver diferença apontada no livro, pp. 100-101): gostou e não gostou da viagem.

 

Gostou porque descobriu a razão porque é escritor (p. 114) e porque viaja (p. 115) – não revelamos os porquês para não furtar o prazer da descoberta ao leitor; gostou porque cimentou laços familiares (por exemplo p. 103, o casamento em Las Vegas, p. 108, a ida da família toda a esta cidade, pp. 119-120) e a amizade com Makarov, o companheiro de uma das viagens, antifo amigo das tatuagens no Bairro Alto e ilustrador do livro; gostou porque face a duas cidades, a mais profana e materialista do mundo, Las Vegas/ EUA, e uma das mais religiosas e/ ou espiritualistas, Banguecoque/ Tailândia, defrontou-se consigo próprio, com os seus limites cívicos e mentais; gostou porque detectou fios inconsúteis  de ligação entre a infância e a adolescência numa aldeia  do Alentejo, o filho mais novo de um carpinteiro, e o adulto escritor e viajante, não uma vida artificial, mas uma vida genuína, no passado e no presente. Gostou, enfim, porque encontrou o fio ontológico de ligação da totalidade da sua existência, percebeu que não viveu inutilmente, e que o que tem feito (escrever, viajar) continuará a ser doravante o fulcro da sua vida.

 

Não gostou porque constatou ser “imperfeito” o caminho: “Quanto mais tento conhecer-me, mais percebo o quanto falta para me conhecer. Quanto mais ilumino, mais consciência tenho das enormes distâncias que falta iluminar” (p. 110); não gostou porque constatou que não é sujeito da sua existência: todo o artigo número 27, demasiado longo para aqui transcrever; não gostou, porque percebeu que o caminho é o lugar da imperfeição e a viagem, por maior, é sempre inconclusa: “Não sou o meu corpo, não sou o meu nome, não sou o que tenho, não sou estas palavras, não sou o que dizem que sou, não sou o que penso que sou” (p. 184). Não gostou porque percebeu que muito do que é como escritor lhe é exterior, que é apenas um elo do “caminho”: “Sou um caminho. Sou alguma coisa que vem de antes, que me foi entregue pelo meu pai. Também ele a recebeu. (...) Sou alguma coisa que continuará depois de mim, que entrego aos meus filhos” (p. 185). E, mais radical, na p. 152, a propósito da decisão impulsiva de partir para as duas cidades: “Será que alguém decide alguma coisa?”

 

A coesão do texto narrativo é dada pela história macabra de alguém que envia pelo correio de Banguecoque para Las Vegas várias caixas contendo a cabeça de um bebé, o pé direito de uma criança cortado em três partes, pedaços de pele tatuada e um coração humano. Narrada na primeira página, ela surge a espaços no texto, acrescentando nova informação, até finalizar a última página do livro. O leitor desconhece se, inserida num texto de certo modo confessional, a história é verdadeira. Porque alimentado pela “não-ficção”, pressupõe-se ter sido verdadeira.

 

Balanço final da viagem: “As palavras são espelhos imperfeitos. Escrever, mesmo com todas as insuficiências, é o que sie fazer para descobrir quem sou” (p. 113), e, interpretado o passado e o presente, conclui o autor/ narrador: “O velho que imagino que serei é o velho que gostaria de ser” (p. 147), ainda que a criança imaginada não tenha sido a criança real, a que foi mesmo, mas aquela é a única criança pensável pela memória e, portanto, a outra, a verdadeira, não existe.

 

De recordar ao autor.narrador o belíssimo final de Viagem a Portugal, de José Saramago: “A viagem não cana nunca. Só os viajantes acabam. E mesmos estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. (...) É preciso recomeçar a viagem. Sempre.” No caso de JLP, traçar até ao final da sua vida, que desejamos longa, novo “caminho imperfeito”. 

 

Única falha: José Luís Peixoto atravessou o rio Mekong e não se lembrou  que foi aí que Luís de Camões naufragou.

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Brotéria, Fevereiro de 2016

29.02.16

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Jornal de Letras, 11 Novembro 2015

18.12.15

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DEZ NOTAS

 

Enquadra-se o último romance de José Luís Peixoto (JLP), Em Teu Ventre, em dez notas literárias, que se intentam constituir como âncoras de leitura:

 

  1. MEMÓRIA HISTÓRICA: um dos mais importantes elementos enquadradores do romance é constituído pela história de Fátima e pela multiplicidade da sua hermenêutica religiosa e ateia. Como é possível escrever sobre Fátima sem cair na repetição do "já dito", do "já sabido", do "já conhecido"? Como elevar a um patamar estético a biografia dos Pastorinhos e a hierofania das Aparições? JLP solucionou estas questões optando, de um modo original, primeiro, por não ceder à facilidade do realismo; segundo, postado num equilíbrio de cortar a respiração em cada capítulo - por respeitar as Aparições sem as envolver no dilema maniqueísta entre verdade e falsidade (cf. epígrafe de Alain Badiou); terceiro, por apostar no lirismo como manto envolvente da narrativa, espiritualizando-a;

 

  1. BÍBLIA: texto-matriz alimentador do romance. É um texto-arca, um texto-fonte para o autor, que com ele dialoga continuamente na sua obra, como já sucedera em Nenhum Olhar, Uma Casa na Escuridão, e Cemitério de Pianos. Texto inspirador, no plano da expressão, que sustenta o estilo bíblico da intervenção de Deus como narrador, um Deus que, no romance, ganha o estatuto ficcional do ser do texto e não como transposição religiosa verdadeira;

 

  1. NARRATIVA COMO TELA: o romance evidencia-se como uma tela visual, cinematográfica, na qual as imagens avulsas da vida de Lúcia e da sua família e os acontecimentos principais, com exceção do relato das Aparições, se vão sucedendo, descritas liricamente como fluxos de consciência, fantasmas da realidade, criando a ilusão da verosimilhança. Não se trata de uma imaginação solta, liberta da realidade, vogando indefinidamente num mundo só seu, mas de um universo modelado pela diferente realidade acontecida. Pode-se, com facilidade,, criar um texto para teatro a partir de monólogos de Lúcia e sua mãe, Maria. Assim, o leitor não está perante um texto absolutamente fidedigno em relação ao sucedido, mas do que o autor (não o narrador) concebeu como uma das hipóteses do que poderia ter sucedido;

 

  1.  NARRADOR: narrador clássico e narrador múltiplo e diferenciado segundo as perspetivas individualizadas das personagens, Deus, Lúcia e Maria. Deus: narrador sentencioso, atemporal, universal, judicativo; Lúcia, narradora inocente (fala com animais e objetos); Maria, narradora múltipla (há pelo menos três figurações diferentes de Maria) emotiva e sofrida, exemplo cultural paradigmático da Mulher/Mãe;

 

  1.  ESTILO: lírico, indubitavelmente, integrado no habitual do autor. Palavras enquadradoras de sentimentos (qualidade de estesia, analisada por Luís Carmelo em A Luz da Intensidade), cultivando uma percepção ou sensualidade emotiva, que desperta no leitor uma comoção estética. Todo o parágrafo parece nascer da primeira frase, como se esta fosse a única e as seguintes seus desdobramentos, explorando-a descontinuamente, não deixando de impor, no entanto, um ritmo sintáctico contínuo e harmónico, fortemente musical. Todo o romance parece ser um cruzamento de "monólogos" pelos quais se dá conta de fluxos de consciência narrativos de Deus, Lúcia e Maria, Padre, Jacinta, Francisco, emoldurados pelo ato de narração clássica;

 

  1. TEMPO: 1917, Fátima, casa e aldeia de Lúcia demarcam uma temporalidade específica. Porém, o estilo lírico-poético, assemelhando-se ao ritmo de união de versos num poema, eleva o primeiro nível de temporalidade a uma beleza estética intemporal. Melhor dito, atemporal, que condiciona a leitura da ação e do enredo particulares a um modo de expressão universal. Tanto se está em casa de Lúcia, com a panela do almoço ao lume, como se reflete, sobretudo nos versículos sentenciais de Deus, sobre a criação do mundo, a liberdade, o destino e a angústia humana;

 

  1.  ESPAÇO: Serra d'Aires, Fátima. Tal como, ao longo do romance, o tempo se abstratatiza e atemporaliza, assim o espaço profano se metamorfoseia em espaço sagrado por via do acontecimento hierofântico das Aparições, no entanto nunca narrado, apenas sugerido pelos seus efeitos (Maria da Capelinha, multidão, intervenção do padre ou senhor prior...). O estilo lírico combina com a mundividência do espaço sagrado, a hierofania das Aparições com a sacralidade territorial das revelações. No final, anuncia-se, por intermédio do afã de Maria da Capelinha, a instauração do sagrado através da elevação de uma capela;

 

  1.  MEDO E ESPANTO: segundo Rudolfo Otto (A Ideia do Sagrado, 1917) e do seu conceito de "Numinoso", não se pode falar de sagrado sem que duas categorias emirjam espontaneamente: a de tremendum e a de fascinans. Encontramo-las em Em Teu Ventre subordinadas à descrição da emoção, do medo como sentimento que tanto desperta o pavor do desconhecido quanto atrai pelo maravilhoso. Desorientada, narcotizada por se sentir privilegiada pelo acontecimento, e ambicionando "tocar" (ter direto contacto) com os Pastorinhos, a multidão é atravessada pelo duplo sentimento de medo e espanto: violenta a casa de Lúcia (pp. 137 ss.), ameaça esta (pp. 56-57) e constrange Jacinta e Francisco (pp. 145 ss.);

 

  1. IDOLATRIA: este duplo sentimento de medo e espanto sagrados gera uma onda de veneração e adoração entre a multidão: curiosidade infantil, rogos e preces (pp. 139-141), novos vestidos e coroas de flores para Lúcia e Jacinta (p 156); deferência pelo estatuto de Lúcia como intermediária entre o profano e o sagrado (p 157). São os movimentos iniciais de idolatria que converterão doravante Fátima num local de oração e penitência para milhões de portugueses;

 

  1. HINO À MÃE: É, indubitavelmente, a grande personagem de Em Teu Ventre. A mãe de Lúcia, síntese e símbolo da mulher portuguesa sofredora, resignada, protetora da filha e socorro da família, não se amotina, não se revolta, nem quando o marido a procura a desoras, protesta angustiosamente, desorientada: contra Lúcia, presumindo que esta mente, ou quando Lúcia brinca fingindo ser Nossa Senhora (pp. 129 130); contra o destino que assim a fez mulher como um ser humano de segunda categoria; contra a fatalidade que a marcou como mãe de uma vidente; contra o silêncio que se ergue em torno do clamor das mães. Os últimos versículos da fala de Deus no romance retratam a Mãe do Céu, que é a mãe da Humanidade, a mãe de todos, e, portanto a mãe de Lúcia. A Mãe singular une-se à Mãe cósmica em forma de laço que tudo une, o Amor de Mãe, a Esperança dos Homens.

Belíssimo romance, um dos melhores de José Luís Peixoto. Acabámo-lo de ler e não queríamos que tivesse acabado. É o melhor elogio que se pode fazer a um livro e a um autor.

 

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O Globo, 18-4-2015

20.04.15

O SOL NEGRO

 

Por José Castello

 

          Perdi meu pai no ano de 1982. Um longo silêncio se estendeu diante de mim. Trinta e três anos depois, a sombra de meu pai retorna nas páginas de um livro: "Morreste-me", do português José Luís Peixoto (Dublinense). Leio a novela de Peixoto _ seu livro de estréia, lançado em Lisboa em 2000 _ com o coração apertado. Luz e escuridão se mesclam nessa narrativa de indisfarçável origem autobiográfica: ela é dedicada à memória de José João Serrano Peixoto, pai do escritor. Foi preciso que o pai morresse para que o escritor pudesse nascer. Hilda Hilst tinha uma explicação forte para isso: “Toda literatura nasce de uma tragédia familiar”.

          A caminho da casa do pai morto, o filho constata: “Parto para o que sobra de ti e tudo são resquícios do que foste” É uma viagem fosca, atravessada pela grande sombra da morte. “Viajo no escuro que deixaste e chego finalmente a ti”. Na verdade, é a si mesmo que o narrador chega _ o que já se expressa no belo título, "Morreste-me". A morte do pai é, também, a morte do filho. Daí a urgência do retorno ao passado, da volta a esses resíduos que, se não restauram uma existência, pelo menos a simulam. É noite. “O negro líquido da noite a mover-se, a acordar em figuras redondas de água”. É a primeira noite que o pai não viveu.

          A dor contamina todo o livro, derramando-se pelas frases e impregnando-se nas imagens tensas. O romance abre com três frases vigorosas: “Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse”. As lembranças da agonia paterna se misturam à experiência de retorno, lançando o narrador em uma busca ainda mais atormentada. O pai se submeteu ao tratamento da doença _ um câncer incurável no abdômen _ sustentando a falsa esperança de sobreviver. Desde o início, a dor impôs à realidade a aparência de um teatro. Encenação cruel, ao fim da qual todos os cenários desabaram, restando só uma ausência.

          “Comigo, a casa estava vazia. (...) As várias sombras da sombra de mim, imóveis, passeavam-se de corpo para corpo, porque todos eles, todos meus, eram igualmente negros e frios”. O frio também se alastra pelas páginas de Peixoto e nos faz tremer. “Pensei: não poderiam os homens morrer como morrem os dias?” Ao cair da tarde, “pássaros cantam sem sobressaltos e a claridade líquida vítrea em tudo”. A brisa é leve, as folhas dançam, o mundo se move lentamente para a noite. Chega-se, então, ao “silêncio esperado, finalmente justo, finalmente digno”. Por que, na morte dos homens, ao contrário, são tantos os temores? Por que há tanto lamento e tanto alvoroço? Não poderiam os homens morrer como os dias?

          Em contraste com a voz muda do pai, reverberam alguns ecos. As coisas, mortas também, se tornam violentas. “Tudo o que te sobreviveu me agride”. As coisas são transpassadas por uma luz fina, “que agora és”. Esse pai transformado em luz persiste como um sol negro. Um sol detido em um intervalo do tempo, luz do que já não há. O que mais nela agride é a imobilidade. É ela, com sua colcha de mentiras, que faz o mundo doer. “Tudo quer e tenta ser igual”. Mas na barriga do mundo há agora um oco, vazio que “quer ser mundo ainda”. Não foi só o filho quem morreu com a morte do pai, a realidade morreu um tanto também.

          A linguagem de José Luís Peixoto é dançarina. Só essa linguagem inundada de poesia pode ainda aproximar pai e filho. As horas se embaralham e o filho se vê pequeno, sentado no carro do pai, espremido pelo cinto de segurança, a perguntar quanto tempo falta para chegarem a seu destino. Naquela época, ainda fazia sentido perguntar pelo tempo. Hoje pergunta alguma suporta mais a noção de passagem. Os dois estão retidos em uma zona fixa, na qual só as sombras ainda conseguem se movimentar.

          O filho passa a noite, sozinho, na casa vazia. O ar, então, se enche de perguntas. “Onde estiveste esta noite, pai? Procurei-te para lá da memória, nos cantos que só nós conhecemos, e não te vi”. No quarto, a cama está feita, a esperar o pai que não chegará. O rapaz remexe as gavetas, abre as portas do armário. Busca – o que? Em um impulso, veste as roupas do pai morto. Olha-se no espelho. “No reflexo, encontrei-te, vi-te passar a mão rapidamente pelo cabelo e alisar a roupa no corpo e acertar o colarinho da camisa”. O rapaz olha fixamente a própria imagem. Espanta-se: “Vi-me igual a ti, nas tuas feições firmes”. O pai morto renasce no filho vivo, que agora é seu pai também.

          Sem o pai, as coisas perderam a vida. Na mesa de cabeceira, o relógio de pulso ainda marca inutilmente os segundos, “mesmo depois de ti”. O tempo já não serve para nada, é só um traste que devemos carregar. Insistente, o filho coloca o relógio no pulso: “Ainda as marcas de suor, ainda tu”. Em tudo, o pai permanece como nódoa, o que não é suficiente para soprar vida às coisas. Aturdido, o rapaz permanece ancorado ao grande sol negro. “Passei a noite sozinho. Contigo. Perto do silêncio absoluto”.

          Resta ao narrador o “vazio que ficou dos gestos que não fazes, das palavras que não dizes, do olhar permanente que tinhas e já não poder ter”. É sobre o nada que o mundo agora se sustente. A noite: o lugar mais oco do mundo. O rapaz sente a morte do pai como um segredo que já não pode contar a ninguém. Nem a si mesmo. Percebe que a morte é o impronunciável. Que ela é algo que não se pode dizer. Se você diz, morto já não está. Só o silêncio contorna a morte.

          Logo que amanhece, trêmulo como um fugitivo, o filho deixa a casa paterna. “Ninguém se atreveu nas ruas da minha passagem, só a cal e o sol e as casas permaneceram no lugar onde as conhecemos tantos dias”. Parece já não haver mundo, também, para esse filho que, sob a luz do sol, encarna o pai morto. Esquiva-se como um fantasma. Volta ao cemitério. No mármore frio, resta o nome do pai. “Tem o teu nome, pai. O teu nome importante, pai. Escrito para sempre, como as nuvens, como as coisas que não morrem”. Perfilado diante da campa, o filho se deixa invadir, ele também, pela grande estrela negra, astro paradoxal a emitir uma luz que, se ilumina, também mata.

 

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