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O Globo, 26 de agosto de 2014

28.08.14

 

 

 

TEXTO COMPLETO: 

 

José Luís Peixoto: ‘Na Coreia, os rádios só têm o botão de ligar e desligar’

 

“Tenho 40 anos, dois filhos e nasci em Galveias, Ponte de Sor. Um dia, quando estava em Korean Town, em Los Angeles, pensei em escrever sobre algo diferente da minha realidade e que não fosse literário. O próprio lugar me deu a resposta, e decidi ir para a Coreia do Norte, que era o mais diferente que eu conseguia imaginar”

 

Conte algo que não sei.

Na inauguração do primeiro e único campo de golfe norte-coreano, segundo a agência nacional de informação, o líder Kim Jong-Il acertou todos os buracos com uma só tacada em cada um deles sem nunca ter jogado golfe antes. No fim, disse que não voltaria a jogar porque era muito fácil. O feito se tornou indiscutível e foi testemunhado apenas por seguranças e generais.

 

A Coreia do Norte é um anacronismo no século XXI?

Já existiram muitas ditaduras na História, mas, com esse nível de sofisticação de controle dos cidadãos, não creio que já tenha existido. E ele é feito por meio da restrição da informação. Nós vivemos em uma sociedade de informação, o que faz a Coreia do Norte parecer um país fora do mundo.

 

Em sua experiência no país, foi possível separar o que é mentira e o que é verdade?

Ali, toda informação é propaganda do regime. Tentar entender a Coreia do Norte e os norte-coreanos é um exercício muito difícil. É muito complicado se colocar no lugar de uma pessoa que nasceu naquela cultura, com os pais defendendo um regime de ídolos e líderes sobre-humanos. Mas, apesar de viverem com regras severas e marciais — o país é o quarto no mundo em número de efetivos militares —, há momentos em que as pessoas se soltam.

 

Que momentos são esses?

A manifestação da individualidade é uma das coisas mais oprimidas no país. E ela é muito rara. Eles ganham a liberdade pelo soju, uma bebida tradicional que os deixa mais relaxados.

 

Qual foi a sua impressão da força militar do país?

A primeira das duas visitas que fiz, em 2012, coincidiu com os 100 anos do nascimento de Kim Il-sung, o principal líder histórico do país. É a partir do nascimento dele que é contado o calendário usado na Coreia do Norte. Assisti a um desfile militar em Pyongyang, e, até para quem não é especialista bélico, pareceu evidente que se tratava de material muito ultrapassado. Depois da passagem do aparato, o ar ficava irrespirável por causa da fumaça dos veículos muito antigos, queimando óleo.

 

Pelo seu relato, isso se aproxima muito do país fictício de Orwell em “1984”, não?

Sim. Não há um momento em que as pessoas minimamente mostrem algum descontentamento. É uma sociedade que vive sob acusação mútua. Todos observam tudo e todos. Esse discurso bélico está em toda parte. É uma ferramenta de propaganda para deixar o povo em suspensão, como que preparado permanentemente para uma guerra, com a impressão de estar sob ameaça constante dos seus principais inimigos.

 

O que você conseguiu conversar com a população?

São poucas as pessoas que falam outra língua além do coreano. As conversas com os guias geralmente têm um filtro do discurso oficial, e, às vezes, eles falam de uma realidade que claramente não existe, como, por exemplo, números extravagantes de produção em fábricas completamente obsoletas. Com os guias é quase impossível ter conversa sobre temas polêmicos. A Coreia do Norte é um país que só tem uma TV e um canal de rádio. Os aparelhos de rádio são vendidos só com o botão de ligar e desligar. Os norte-coreanos recebem lições inventadas de como é o mundo exterior, que os fazem acreditar que são o país mais desenvolvido do mundo.


No site de O GLOBO.

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