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Recortes sobre José Luís Peixoto e a sua obra.
Não é fortuito que o último livro de José Luís Peixoto (J.L.P.) seja lançado a 25 de março, uma vez que a sua ação se distribui ao longo dos três dias seguintes, que rapidamente se descobrem ser a antevéspera, a véspera e o dia concreto do nonagésimo aniversário do protagonista, 28 de março de 2021; nem é por acaso que nomes reais e geografias concretas se cruzam, estiradas mais além das palavras que vão grafando o percurso de uma vida: a do senhor Rui, também conhecido por comendador Manuel Rui Azinhais Nabeiro. Dispensar-me-ei de tecer considerações sobre esta personalidade forte e generosa. Também o autor me eximirá, confio, de o referir enquanto tal, para me reservar ao modo como consegue ajustar uma vida que desenha a obra e uma obra que desenha a vida. Insisto não ser um romance biográfico nem uma nova recolha e compilação de memórias, o que poderia ser o eixo de uma sinopse redutora e incorreta do que as páginas, na realidade, espelham; seria fácil, mas a leitura evidencia o erro de perspetiva e diverge fatalmente do ângulo traçado por J.L.P. Não nos surpreende a capacidade do escritor em tornar tátil, audível e, de algum modo, corporizar o etéreo em gestos sem movimento; o que surpreende é o modo como os sentimentos, as memórias, o olhar feito de muitos anos de vida e afetos se transformam em narrativa, embora não em ficção. Reconhecemos o senhor Rui, a sonoridade amorável do nome “Alice” e do de cada um dos filhos, netos e bisnetos, quase revivemos com ele o cheiro do carro que o pai conduzia, quase refazemos com ele os “mandados” (recados) à mãe, recuperamos com ele a memória dos caminhos dos montes e dos vales, mas acima de tudo — graças ao escritor — sentimos que o seu desígnio perdura e que, sobrepondo-se às múltiplas facetas conhecidas, nos devolve o olhar através do qual vive, se expressa e pensa: de dentro para fora. Poder-se-ia dizer que a história é conhecida, mas a relação entre os dois apenas o convite que J.L.P. nos endereça para este “Almoço de Domingo” consegue explicar.
LUÍSA MELLID-FRANCO