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Sol online, 04 Dezembro 2012

04.04.14

As sombras e a luz de José Luís Peixoto

 

Luís Osório


Estive em Galveias, o lugar onde uma rua tem o seu nome e as pessoas lhe tocam como se tocassem em si próprias. Não é uma forma de dizer ou de pintar as palavras, é a mais pura das verdades, eu vi.

 

Na Rua José Luís Peixoto estava um cão a âfalarâ ao fundo. Um homem foi ao seu encontro e da placa, perguntou-lhe se era mesmo aquele que partira para a grande cidade, para o mundo. Era ele, o do nome no cimento, o escritor com quem almocei a sós, pela primeira e última vez, quando dirigia um jornal e ele tivera um enorme sucesso com o seu Morreste-me, livro em que viajou ao interior de uma memória em ferida, a do seu pai morto quando estava em idade de vida. Creio que acabara de lançar o Nenhum Olhar, romance em que partiu dos lugares da juventude, os dessa Galveias que o moldou e lhe deu tudo o que precisava fê-lo como Saramago que, apesar de ribatejano, escreveu o Levantado do Chão. Saramago por convicção ideológica, Peixoto por urgência de si próprio.

 

Almoçámos no desaparecido restaurante Paris, conversámos de circunstâncias, fiz-lhe um convite para ser cronista, o trivial. Eis que, dez anos depois, encontrámo-nos na terra onde tantos vivem cismados como se, em permanência, armassem exércitos de sombra e de luz. Contou-me dessas cismas: «Quando alguém aqui se suicida há sempre quem diga não ter ficado surpreendido porque ele ou ela andavam cismados». A cisma não se explica, habita a intimidade do Alentejo, habita também o escritor, pressinto-o nas suas palavras, nas que escolhe para matar e nascer, pressinto-o.

 

Na encosta de uma colina do alto alentejano, rodeada de duas barragens onde o silêncio é ensurdecedor, Galveias é José Luís Peixoto. Na escola primária, mais de quarenta miúdos esperaram a sua visita, receberam-no com gritos, fizeram-lhe perguntas. A ele e à velha professora que o ensinou a ler e a contar.

 

Perguntas sem ponto de interrogação no fim, opiniões que esperavam apenas pela sua concordância. âConheceu o meu pai, não conheceu Foi aqui nesta sala que aprendeu como estou a aprender, não foi Nos países que visitou tem saudades daqui, não temâ. Esperava que perguntassem pelos piercings cravados só no lado direito. Pelas tatuagens que vivem à superfície e são marca de água, pensei que perguntassem pelo óbvio, mas não Os miúdos perguntaram sem perguntar, como o fizeram também os velhos e os amigos de infância e juventude. Uma entoação de ponto de interrogação, sem ponto de interrogação se a frase fosse escrita.

 

Retórica que não é bem amor, talvez mais uma alma colectiva, uma identidade. Não tenho o talento de explicar, é como se no caminho de regresso, tivessem vindo com ele e com uma parte de todas as crianças, amigos de infância e os velhos que visitou no lar. As flores que lhe deram, o desenho oferecido por uma criança que o pintou e o colocou ao seu lado, como se fosse também um bocadinho seu filho e José Luís Peixoto um pai que, de uma maneira ou de outra, estará sempre presente. Afinal ele é a prova de que tudo é possível a professora primária bem lhes repetiu naquela manhã: «O José Luís era tão ou mais irrequieto do que vocês, ninguém lhe dava descanso à perna».

 

O cão a âfalarâ ao fundo da rua baptizada com o seu nome é importante nesta história. Cismei à minha maneira que o era porque, de todos por quem passámos nas Galveias, talvez fosse mesmo o único para quem o escritor não passava de mais um, igual aos outros.

 

Não lhe disse destes pensamentos. Viemos à conversa todo o caminho com uma câmara a gravar, talvez um destes dias essas imagens possam ser vistas falou-me de Portugal, da palavra Amor, a única que ficaria se por ventura de todas as outras tivesse de abdicar. Estranha forma de vida que o fez, ainda assim e sem contradição, aproximar-se das vísceras das guitarras em distorção, dos sons pesados e de sombras, do que é gótico e parece mais afastado da luz de que se diz pródigo Di-lo sem dizer quando escreve cartas de afecto aos professores, quando escreveu ao pai o que talvez tenha sempre ficado calado, quando inventou palavras de poema para a mãe que é a casa que conhece, a casa que a maioria de nós conhece. Quando se diz optimista também. A luz e a sombra. Porventura a explicação para metade da sua cara estar âtatuadaâ e a outra estar limpa sombras e luz, morte e vida, pessimismo e optimismo, cisma e esperança.

 

Falou-me também das viagens, deste último livro (Dentro do Segredo), quase jornalístico, um quase no país dos mistérios e das sombras, uma Coreia do Norte por onde pôde caminhar e ver com os olhos das suas obsessões, inquietações e sonhos. Ou do seu primeiro livro infantil, A Mãe que Chovia, um longo poema de amor à sua própria mãe, que tão orgulhosa ficou quando a rua foi inaugurada com o nome do filho nascido no Setembro do ano da queda do Estado Novo. Rua José Luís Peixoto, onde um quase jovem como ele lhe fez perguntas retóricas e um cão ladrou da sua justiça.

 

 

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Sol online, 17 de Dezembro 2012

04.04.14

José Luís Peixoto: 'É difícil avaliar a felicidade dos outros'

 

 

17/12/2012 09:54:00
Se há lugares que poucos conhecem, a Coreia do Norte é um deles. Apesar do hermetismo, recebe alguns turistas por ano, em viagens organizadas acompanhadas por guias locais. Ninguém pode estar sozinho. José Luís Peixoto participou numa viagem desse tipo. Consigo levava a intenção de escrever um livro sobre um dos países mais mal conhecidos do mundo. Dentro do Segredo (ed. Quetzal) já está nas livrarias.

como surgiu a ideia de ir à coreia do norte?

tenho viajado bastante. a partir de certa altura impôs-se a escrita de viagens. o centro temático do que escrevi até aqui é o que me é próximo. se quisermos encontrar uma região que se associe à minha obra é o alentejo, onde nasci e cresci. quis procurar experiências, temáticas e cenários diferentes. a coreia do norte era diferente de forma extrema. esperava encontrar algo que me fizesse reflectir, que abanasse o meu mundo.

mas entre o alentejo e a coreia do norte há uma panóplia imensa de opções.

sempre tive interesse na realidade de países como a coreia do norte. e não é como se saísse de uma aldeia no alentejo e fosse à coreia do norte. há duas semanas acabei um ciclo de viagens: num mês fui ao brasil, macau, canadá e índia. o livro está ligado à minha experiência. não há a certeza da verdade, é um país enganador, com muitos jogos de espelhos, ilusões, alucinações, que fazem com que se duvide do que se vê e do que nos é contado.

receava a viagem. não partilhou onde ia. porquê?

existem ideias feitas e preconceitos em relação ao país que não sabia se deveria desmontar porque não tinha a certeza da sua validade. e fiquei mais receoso quando, em dezembro do ano passado, morreu kim jong-il, o líder incontestado e único da coreia do norte, o que colocou o país numa grande indefinição. achei que podia haver necessidade de provar algo à ordem internacional. para um estrangeiro, isso tanto pode ser uma vantagem como uma desvantagem.

fala-se de reféns…

em japoneses desaparecidos, que terão sido sequestrados pela coreia do norte, que o rejeita. mas há sinais que a incriminam.

não podia levar material impresso. mas decidiu levar o dom quixote.

foi um risco calculado. não é directamente subversivo, o que poderia ser uma atenuante. e era em português. receia-se que se tente fazer alguma espécie de proselitismo, religioso ou político. alguns já o tentaram, o que trouxe situações desagradáveis.

deixou o telemóvel à entrada do país. isso fez-lhe bastante impressão. porquê?

era um símbolo. habituámo-nos a estar sempre contactáveis. quando isso se perde, fica a insegurança.

assinou um papel em como não escreveria nada, o contrário da sua intenção.

não era viável esconder que escrevia livros. assumi-o desde o início. mas fiz saber que não era jornalista. ou não ia ou assinava o papel. assinei-o contrariado, achando que não teriam direito de, depois, me impedirem de dizer o que vi. quando cheguei fui averiguar qual a validade do documento em termos legais. não é muita. há um valor superior: a liberdade de expressão.

qual foi a sua primeira grande impressão ao chegar?

a constatação de lá estar, que nunca dei por garantido. houve um momento em que a agência me enviou um e-mail a dizer: ‘não podemos garantir que o percurso que se pensou fazer seja feito. pode desistir agora’. foi perturbador. estava em causa não só a viagem como a intenção de escrever um livro.

a viagem foi organizada por uma agência de viagens chinesa. é a única forma de lá entrar como turista?

não, existem agências na holanda, frança e china. só que as viagens são mais curtas, de cinco dias. não há turismo de massas. fui com um grupo de 20 pessoas que, numa parte da viagem, teve de ser dividido. não havia possibilidade de sermos hospedados todos em certas cidades. e as estradas não suportavam veículos onde fôssemos todos.

sublinha várias vezes ser contra todos os regimes totalitaristas e ditatoriais. por que sentiu essa necessidade?

achei importante. li muito sobre a coreia do norte e muitas coisas faziam a apologia do país e do regime. mas é um regime violento, cruel, que merece a nossa condenação, por mais interessante que seja avaliar um extremo a que uma sociedade pode chegar, avaliar um extremo a que a natureza humana pode chegar, sob a perspectiva da crueldade e da prepotência e da submissão.

diz que a coreia do norte não é um regime comunista. porquê?

não tenho nenhuma intenção de desculpabilizar as ditaduras comunistas que não são, em aspecto nenhum, melhores do? que quaisquer outras. sou contra todos os tipos de ditaduras. há um livro sobre a coreia do norte, que cito, de um senhor chamado myers, sobre a sua ideologia. confirmando o que li com o que vi, é sobretudo nacionalista e racista.

em que sentido?

promove tudo o que é coreano e a raça coreana em detrimento das outras. os inimigos, como o japão ou os estados unidos, são demonizados a partir de uma perspectiva racial. as ditaduras ditas socialistas sempre fizeram uma distinção entre a população e os seus dirigentes. no caso da coreia do norte, até as crianças americanas são representadas como facínoras. o único país, dos inimigos declarados da coreia do norte, em que existe uma distinção clara entre a população e os dirigentes é a coreia do sul, em que os dirigentes são retratados como fantoches ao serviço dos eua ou do japão, mas a população é vista como irmã, algo que foi separado artificialmente mas que um dia se reunirá. parece-me que no momento em que as coreias foram divididas e que kim il-sung começou a organizar o país, foi empurrado pela ordem internacional para esse lado. o mundo estava dividido, tinha de encontrar uma forma de sobreviver. havia uma guerra, precisava de apoio. veio desse lado.

os princípios do socialismo não estão lá?

são aplicados mas creio que são uma forma de organização, não um valor ideológico.

mas há a percepção de que é um país comunista. tivemos a polémica de o pcp não o condenar.

ainda existe um mito em relação a isso. o pcp não apoia o regime da coreia do norte. foi próximo, mas que já não é.

o que mais o surpreendeu na viagem?

tive uma margem de liberdade maior do que imaginei. existem algumas bolsas de descanso. as pessoas riem-se com gosto. dançam e cantam. e as trocas de afecto são muito mais visíveis no quotidiano da coreia do norte do que aqui.

teve contacto com o quotidiano das pessoas? percebeu, por exemplo, como se casam?

os casamentos são livres. as pessoas casam-se com quem querem. mas há coisas que entram em consideração para essas escolhas, como a posição social. o que também acontece aqui. é o normal. namoram e casam. e o estado garante-lhes uma casa.

uma casa?

tem muito que se lhe diga. morar-se na capital só está acessível a alguns, a uma elite. e tudo é definido pelo estado: onde moram e em que condições.

o estado está presente em tudo?

sim. a roupa é fornecida pelo estado, a comida também, quase não há comercio.

e há igualdade de género?

teoricamente sim, mas as mulheres têm papéis muito definidos, atribuídos por questões tradicionais, relacionadas com os filhos.

aqui também.

sem dúvida. já morreram 36 mulheres este ano [vítimas de violência doméstica].

é comum, por exemplo, encontrar mulheres no exército?

sim. na construção civil e no exército. mas os papéis são bem definidos.

as pessoas não sabem que há outro mundo. pareceram-lhe felizes?

é muito difícil avaliar a felicidade dos outros. muitas vezes não depende do quanto se tem. mas acredito que é muito difícil ser feliz passando fome, como me pareceu acontecer nalguns lugares daquele país. esse aspecto é determinante: o facto de se desconhecer completamente aquilo que é o mundo exterior, ou o facto de se ter uma ideia do mundo exterior que não é a real e que coloca a coreia do norte como o país mais desenvolvido do mundo, que leva as pessoas a crerem-se privilegiadas.

acredita-se mesmo nisso?

penso que sim. não circula qualquer cultura no país, excepto a propagandística, a promover a coreia, os valores da coreia, a obediência e o respeito pelos líderes.

como são vistos os americanos na coreia do norte?

toda a gente acha que os americanos os invejam e que são forças do mal, que são intrinsecamente maus do ponto de vista moral, enquanto os coreanos são intrinsecamente bons e vistos como um povo escolhido. muitas vezes mostram-nos coisas acreditando que nós ficamos impressionados. mas temos que empregar uma certa diplomacia. não podemos questionar aquilo que nos é dito, não podemos discordar quando nos dizem que os líderes são extraordinários, não podemos debater isso.

como foi viver duas semanas assim?

houve duas partes. quando começou a chover, o país, que é bastante cinzento, tornou-se mais cinzento ainda. a primeira parte vivi-a com entusiasmo pela descoberta. a segunda com muito cansaço.

qual o momento de transição?

o aspecto do clima foi importante, coincidiu com uma altura em que estive quatro dias fora da capital que foram muito penosos. fomos para regiões onde não iam estrangeiros. via-se uma pobreza muito grande. estive em países africanos com muita pobreza, na costa do marfim, na índia. mas aquela pobreza é diferente, não é assumida, tenta-se esconder. aguenta-se com grande estoicismo mas há sinais muito duros.

como quais?

no caso das crianças ou dos velhos, a sua grande fragilidade. percebe-se que estão mal alimentados, estão mal vestidos para aguentar as temperaturas nesses lugares a norte onde neva.

impressionou-o mais que a pobreza da índia?

sim, é acompanhada de toda a opressão de um mundo que está fora do mundo, da ignorância do que existe fora dali.

achou que era tudo um teatro?

é frequente quererem impedir-nos de olhar em volta, dizerem-nos: ‘tens que olhar nesta direcção’. houve momentos em que, se fosse aceitável, nos teriam vendado. havia coisas que não queriam que víssemos. a justificação era que não queriam que se visse a pobreza. mas muitas vezes essa pobreza não era assim tão evidente. não se podia fotografar ou filmar em movimento. e mesmo em certos lugares havia restrições. às vezes nem havia nada de muito chocante a acontecer. noutros aspectos assiste-se mesmo à encenação e é até um pouco triste.

por exemplo?

em pyongyang, há a loja n.º 1 e a loja n.º 2. são armazéns com produtos chineses, a maior parte deles impossíveis de encontrar noutros lugares da coreia do norte. não há lá ninguém além dos trabalhadores. e é-nos dito que são lojas normais e que são aquelas as lojas onde as pessoas vão comprar o que precisam. é tão evidente que isso não é verdade que chega a ser deprimente.

conta que viu numa fábrica uma senhora fingir fazer experiências químicas...

é patético. uma mesa, no meio de uma sala, completamente vazia, com uma balança de pesos e uma senhora a misturar um pó branco com água não é o mesmo que estar a fazer experiências.

a viagem pesou-lhe?

tudo era estranho, diferente, específico. uma visita à coreia do norte é muito menos uma visita de fruição dos sentidos do que do intelecto. é uma visita muito intelectual. a natureza é fascinante, mas o que mais individualiza o país é a sociedade.

viaja por gosto ou pela profissão?

na maior parte dos casos tem que ver com a apresentação de livros meus e a participação em festivais literários no estrangeiro. depois de escrever este livro num tão curto espaço de tempo fiquei com vontade de estar mais tempo em casa e escrever mais. mas as viagens, sendo concorrentes com a escrita, também a alimentam.

está a escrever um novo livro?

estou a pensar nisso. as ideias que tenho vindo a desenvolver são para um romance. a escrita já começou há algum tempo, não no papel, mas na cabeça e nos projectos.

e a literatura de viagens, é para continuar?

tenho vontade de fazer mais viagens como esta, igualmente imprevisíveis e que, dependendo das características do lugar, me permitirão outras formas de escrita e outras formas de retratar a própria experiência. mas não quero dizer quais são.

os destinos serão novamente ditaduras?

não sei, ainda não está totalmente definido. mas tenho vontade de que este livro seja o início de uma série, mesmo que sem periodicidade definida. e vai ser.

tem uma legião de fãs no facebook e no instagram. por que lhe interessam tantos as redes sociais?

é uma forma excelente de comunicar. há um grande número de pessoas a seguir o que faço por essa via, alimento muito essas redes. coloco textos, muito material do que faço e dos meus interesses. e descobri a fotografia através do instagram. nunca tive, nem tenho, a intenção de ser fotógrafo. mas neste livro tenho uma fotografia tirada por mim na capa. algo que nunca esperei que acontecesse.

tem milhares de seguidores. é uma forma de chegar a novos leitores?

sim. e coloco lá textos que são publicados em lugares que não têm um acesso muito óbvio, às vezes fora de portugal, textos que publico na imprensa, entrevistas como esta.

rita.s.freire@sol.pt

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Diário de Notícias, 24 de Dezembro de 2012

04.04.14

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Time Out, 26 de Dezembro 2012

04.04.14

José Luís Peixoto

Entrevista, Livros

Em Abril deste ano, José Luís Peixoto viajou para a Coreia do Norte. Assistiu à festa do centenário de Kim-Il-Sung, visitou fábricas, museus e o mundo rural do país mais repressivo do mundo. A Mariana Correia de Barros falou sobre a experiência.
Porquê a Coreia do Norte?
Para ser sincero, ainda estou à procura das razões mais profundas dessa escolha. Sendo um país extremo, com características tão duras, também me interrogo. É uma pergunta de auto-análise. Responder é responder sobre mim próprio. Às vezes são desafios que coloco a mim mesmo. Quando assim é, depois a realização também é muito importante.

E já sabia que ia escrever um livro? 
Tinha uma boa suspeita de que isso podia acontecer. Sei que aquilo que me toca, normalmente me motiva para escrever e também supunha que uma viagem destas pudesse justificar, para mim, um livro. 

Qual é a grande diferença entre escrever um livro de viagens e um de prosa? 
O mais útil para mim foi a prática que tenho, há mais de 10 anos, de crónica. Aqui tratava-se, à partida, de dar conta daquilo que eu tinha visto. Nas condições em que tinha viajado. Sendo, por isso, também fiel a todos os dados concretos dessa experiência. O que é bastante diferente de um texto de ficção ou poesia onde, se calhar, aquilo que dita a verdade do que se escreve é o próprio texto. Aqui nunca poderia fugir do documental. É um livro que tem muito que ver com jornalismo. Como a crónica, que também é um género que nasce do jornalismo. 

Foi difícil distinguir a realidade da ficção?  
Já ia preparado, porque sabia as condições em que ia viajar. Não ia entrar clandestino no país, nem sequer a minha intenção, em nenhum momento, foi de recolher informações que me fossem vedadas. Sabia que as informações e tudo aquilo que é dado a ver a um visitante nas minhas condições são uma fachada propagandística. No entanto, também tive oportunidade de assistir às imperfeições desse cenário e por isso aquilo que às vezes interpretava de uma maneira, acabava por ser uma mistura do que via, do que me era dito, do que eu imaginava em função de outras informações que já tinha. 

Qual o episódio que mais o marcou? 
Foi nos festejos do centenário de Kim-Il-Sing, onde me misturei no meio da população. Já estava cansado de tanto tempo a ser apontado e colocado à margem. Mas houve outros, como a visita a um lugar que só começou a receber estrangeiros no ano passado. Estávamos rodeados de crianças e num episódio de avanços e recuos, consegui dar um aperto de mão a uma delas. Elas lembraram-me documentários sobre órfãos na Coreia do Norte que vivem em condições muito difíceis. Ali as crianças são o último reduto de várias coisas muito humanas, como ter alguma espontaneidade.

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Pais e filhos, março de 2012

18.03.14

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Leitura Gulbenkian, 2012

06.03.14

 

 

A mãe que chovia é a primeira incursão de José Luís Peixoto pelo universo da literatura dedicada aos mais jovens: um livro belíssimo, com a sensibilidade de linguagem de um grande autor, que assume que escrever para crianças não equivale a simplificações, nem da história, nem do estilo, nem das potencialidades criativas da língua. 

 

Como sempre acontece com os textos que verdadeiramente podemos classificar de literatura, a simplicidade desta narrativa depressa se desenvolve em planos sucessivos de leitura, que ultrapassam a linearidade aparente da história narrada. E o grande desafio literário, notoriamente superado neste livro, é fazer com que a própria linguagem adquira a capacidade de contar os factos mais estranhos e inverosímeis, com tal naturalidade e sabedoria que provoca no leitor imediata superação de qualquer efeito de estranheza, embrenhando-se no universo da realidade e lógicas próprias do universo ficcional. 

 

O livro conta-nos a história de uma criança que é filha da chuva. E esta facto é dado simplesmente como adquirido, sem mais explicações, nas primeiras frases do texto: «Desde sempre que toda a gente lhe dizia que era filho da chuva». Segue-se depois o dissipar das dúvidas do leitor, se as houvesse, através da caracterização da criança, o protagonista sem nome, que vai crescendo ao longo destas páginas: «Mas esse rapaz esperto, composto por boa disposição e com a idade de mais ou menos, não precisava que lhe dissessem que era a sua mãe. Ele conhecia-a melhor do que os assuntos que conhecia mesmo bem.» A mãe chuva aparece como uma verdadeira mãe, que vai seguindo do alto as passadas do seu filho, mas como no mundo inteiro «só ela sabia chover», viajava muito e «no verão tinha de ir chover em países distantes». Ora o menino ia crescendo, cada vez mais aborrecido e revoltado com as ausências da mãe: «Nesse ano, antes do verão, o rapaz começou a ficar coitado.» A mãe teimava em ficar, mas o vento, pouco dado a conversas, empurrou-a para bem longe, de novo, obrigando-a a cumprir o seu ciclo sazonal. 

 

No final, o filho acaba por aceitar e, num discurso poético, ato de amor à sua mãe chuva, declara-lhe que compreendeu que sem ela «a palavra verdejante não existiria» e mostra-lhe como se apercebeu de que a mãe «chovia palavras sobre o mundo», inundando-o de amor. Assim, neste realismo mágico que reconhecíamos dos primeiros livros de José Luís Peixoto, não é só de um amor entre a mãe e filho que nos fala o livro, como também das angústias pelas, por vezes necessárias, separações, como também da própria natureza, suas necessidades intrínsecas. As ilustrações, de Daniel Silvestre da Silva, acompanham lindamente o dramatismo do texto, oscilando entre o registo realista, quase fotográfico, e uma tonalidade onírica que tão bem acentua a poeticidade do registo adoptado por José Luís Peixoto, neste livro.

 

 

 

Rita Taborda Duarte, in Leitura Gulbenkian

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