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Recortes sobre José Luís Peixoto e a sua obra.
TEXTO DE JOÃO CÉU E SILVA
José Luís Peixoto tem novo romance, Autobiografia. Uma poderosa ficção em que o autor mergulha no universo de José Saramago e utiliza o escritor como coprotagonista.
erá que José Saramago cabe num romance? A pergunta pouco feita pelos escritores portugueses é respondida nesta sexta-feira por José Luís Peixoto, autor de Autobiografia, um romance em que o Nobel da língua portuguesa existe como personagem estruturada. Peixoto, que vem embalado pelo romance Galveias - uma narrativa bem regionalista que chegou ao Japão, onde foi traduzido recentemente, e é um sucesso no Brasil -, deixou-se de medos e captou numa história com dois Josés: um escritor e um pretendente à mesma profissão.
As trezentas páginas que enredam os dois coprotagonistas, o José aspirante a escritor e o José Saramago, surpreendem e José Luís Peixoto atinge o nível que seria exigível a um dos (demasiados?) autores da geração 2000.
Esta é uma poderosa ficção em que o autor mergulha no universo de José Saramago e utiliza o escritor como coprotagonista. Uma espécie daquilo que o Nobel fez com o heterónimo de Fernando Pessoa em O Ano da Morte de Ricardo Reis e que irá surpreender pela habilidade literária com que José Luís Peixoto puxa até ao fim o fio da história.
Um desafio que o próprio Saramago fizera ao afirmar que queria colocar o Convento de Mafra num livro e o fez em Memorial do Convento, a obra que, segundo Eduardo Prado Coelho, lhe aumentou a "base social de apoio" fora das crónicas, de atitudes ideológicas e romances à esquerda anteriores.
Peixoto faz o mesmo, pega em Saramago e usa-o num romance sem receio do desafio.
José Luís Peixoto tinha um problema: é que José Saramago sempre escreveu livros que surpreendiam pelo seu coração criativo. Ora quebrava a Península Ibérica ora cegava os habitantes do mundo. Eram histórias que o leitor não esperava nem concebia como possíveis.
Como contornar essa capacidade de Saramago? A leitura de Autobiografia mostrará que Peixoto se instala num dos romances do Nobel para levantar ao contrário o edifício: O Homem Duplicado. Tal como o protagonista desse romance, Tertuliano Máximo Afonso, irá ver convergir duas personalidades numa única. Mas O Homem Duplicado não passa de uma muleta invisível e logo esquecida quando se fecha a leitura de Autobiografia, porque as personagens de Peixoto têm vida própria. Apesar de o escritor piscar os olhos a alguns dos nomes que o Nobel tornou conhecidos na sua obra.
Há em Autobiografia um editor chamado Raimundo Silva como o revisor de História do Cerco de Lisboa, uma Lídia como a de O Ano da Morte de Ricardo Reis, um Mau-Tempo como o de Levantado do Chão ou um Bartolomeu como o de Memorial do Convento. Há uma Rua de Macau como aquelas em que os pais de Saramago alugavam quartos no início da sua vinda para Lisboa e muitas outras referências ao universo Saramago. Peixoto descreve o escritor e a mulher, Pilar del Río, como se comportavam de verdade.
Recupera as outras duas mulheres, Ilda e Isabel, e justifica muito da existência delas com Saramago por breves e importantes momentos definidores da sua personalidade. Refaz alguns passos do escritor com muita realidade, como nas impagáveis viagens de avião. Contudo, é em quatro parágrafos no fim da página 61 e toda a 62 que capta o ser Saramago na sua plenitude, quando descreve a forma como o escritor acorda e vai esquecendo os pensamentos noturnos.
Peixoto evita semelhanças com as particularidades da escrita saramaguiana, mesmo que de vez em quando ceda para satisfazer aquela que poderá ser a vontade do leitor ao pegar neste livro: ler um pouco à Saramago. Mesmo que a ambiência do romance faça recordar frequentemente alguns dos tiques narrativos do escritor, bem como o modo como interrompia a ação para que o narrador repusesse a ordem, José Luís Peixoto divorcia-se de qualquer facilitismo e Autobiografia é apenas dele. Porque é capaz de se libertar do peso do Nobel e criar uma narrativa muito sua, que até rivaliza com a envolvência dos romances de Saramago.
A leitura de Autobiografia irá despertar nos leitores de Saramago muitas das memórias que têm sobre os seus romances e é essa virtualidade que também engrandece o romance de José Luís Peixoto.
Após Autobiografia valerá a pena perguntar: espera-se hoje por algum romance de um dos novos autores portugueses, os da geração 2000, como se aguardava por um José Cardoso Pires ou um António Lobo Antunes - falemos só destes dois - nas duas décadas anteriores à passagem do milénio? Com o leitor ansioso e a passar na livraria à espera de se confrontar com mais um mito literário. A resposta é não, afinal são poucos os novos autores capazes de preencher um romance com a arte exigida pelo leitor. A surpresa chega inesperadamente às livrarias nesta sexta-feira com o romance Autobiografia, de José Luís Peixoto.
Para evitar desvendar totalmente o novo romance de José Luís Peixoto, deixa-se aqui a informação que a editora Quetzal já revelou sobre Autobiografia: "Um jovem escritor, José, é incumbido de escrever a vida do consagrado escritor, José. Este é o ponto de partida do livro que marca o regresso de José Luís Peixoto ao romance (...). Autobiografia é a história dentro da história, um romance que junta o autor ao mais reconhecido dos escritores portugueses, José Saramago (...). Na Lisboa de finais dos anos noventa, um jovem escritor em crise vê o seu caminho cruzar-se com o de um grande escritor. Dessa relação nasce uma história que mescla realidade e ficção, um jogo de espelhos que coloca em evidência alguns dos desafios maiores da literatura."
(Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto)
Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto