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Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto, in Visão, julho 2019

30.09.19

Saramago duplicado no livro "Autobiografia", de José Luís Peixoto

TEXTO DE LUÍS RICARDO DUARTE
 

O Prémio Nobel da Literatura português transforma-se em personagem de um romance que também é uma homenagem. No livro "Autobiografia", de José Luis Peixoto, literatura com literatura se paga.

 

Ao receber o Nobel da Literatura, em 1998, José Saramago tornou-se inevitavelmente a grande referência das letras portuguesas, o que se traduziu em três grandes eixos: a celebração da liberdade do narrador, que não poucas vezes deriva para reflexões e assuntos paralelos; a vontade de contar uma boa história, presente na sua obra desde o primeiro romance; e o reencontro com uma certa portugalidade, menos épica do que humana. Para as novas gerações de escritores, a importância do autor de Memorial do Convento reforçou-se com o prémio a que deu nome, atribuído pela Fundação Círculo de Leitores. José Luís Peixoto recebeu-o na segunda edição, em 2001, e agora, no seu novo livro, presta-lhe tributo. Homenagem sem ser hagiografia; Autobiografia é literatura que se alimenta de literatura.

 

Essa dimensão de diálogo é o que, de início, mais se destaca no romance. Num entendimento da literatura enquanto jogo (no tempo, nos artifícios e nos símbolos), Autobiografia afirma-se como um labirinto de espelhos, no qual se refletem várias obras de José Saramago. Como nas pinturas cubistas, prestando atenção a determinados pormenores, identificamos claramente a essência de Todos os Nomes, Manual de Pintura e Caligrafia, O Homem Duplicado, Ensaio sobre a Cegueira ou História do Cerco de Lisboa. E não o dizemos só por o nome de todas as personagens ser retirado desses e de outros romances, mas porque se soube fixar o coração dessas obras e encadear os seus artifícios fundamentais num enredo que ganha vida própria. É uma leitura pessoal e original do legado saramaguiano, que se funde com o universo e as obsessões que, desde a estreia, com Morreste-me, José Luís Peixoto tem vindo a perseguir.

 

Autobiografia é, ainda, a revisitação de um célebre conto de Jorge Luís Borges. Como em O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, um escritor mais velho depara com outro mais novo. A tarimba de um contrasta com a angústia do outro. Em Lisboa, no final dos anos 90, Saramago caminha para a consagração, enquanto o outro José não consegue acertar com o segundo romance. A convite do editor, aceita escrever uma biografia do futuro Prémio Nobel. Os seus destinos estão condenados a confundir-se. Ao refletir sobre os caminhos da criação, José Luís Peixoto recria igualmente os seus tempos de aspirante a escritor em Lisboa, convocando para a narrativa a sua geografia afetiva, dos Olivais a Cabo Verde, confundindo ainda mais as fronteiras sempre ténues entre realidade e ficção, vida e obra. E com isso talvez se perceba melhor o sentido do título, Autobiografia. Dentro deste livro vivem todos os escritores do mundo.

 
 
(Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto)
 

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