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O Globo, 24 Março 2012

22.04.15

José Luís Peixoto: a desmistificação de um escritor

 

Fenômeno na Europa, autor português lança ‘Livro’ no Brasil e confirma ida à Flip

 

Ele tinha 25 anos quando publicou seu primeiro livro, “Morreste-me”, um monólogo sobre o luto, dirigido ao pai que perdera. A edição de autor, com letras pequenas para economizar páginas, foi feita para os amigos ou, se tanto, para ser vendida em consignação. No mesmo ano (2000), lançou “Nenhum olhar”, pelo qual levaria o Prêmio José Saramago, dado a jovens autores.

Doze anos e mais de dez livros depois, José Luís Peixoto, considerado um dos mais importantes escritores portugueses contemporâneos, voltará em julho à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) — onde esteve pela primeira vez em 2005 — para uma inédita leitura integral daquele primeiro despretensioso trabalho, que acabou tendo mais de 20 edições. O Brasil será só uma das paradas na maratona em que se transformou a rotina desse autor de 37 anos, que hoje trabalha a divulgação simultânea de três obras: “Livro”, de 2010, que chega ao Brasil agora, pela Companhia das Letras; “Abraço”, publicado em Portugal no fim de 2011; e seu primeiro infantil, “A mãe que chovia”, que estará em abril nas livrarias portuguesas. Em comum, o tom biográfico que levara ao extremo em “Morreste-me”.

'Livro' (Companhia das Letras) é lançado no Brasil“Livro”, embora menos melancólico, começa falando de solidão, ao descrever o tristíssimo abandono de um menino de 6 anos, para mais tarde entrar na trama em que de fato se apoia: a emigração de portugueses para a França nos anos 1960, vivida pelos pais de Peixoto. Uma segunda parte ajuda a explicar o título — voltando-se para si própria, a obra dá voz ao narrador da história inicial, chamado Livro, um personagem que confunde para depois esclarecer. Na entrevista abaixo, Peixoto fala sobre “Livro”, considerado seu trabalho mais maduro, e explica como concilia a intensa agenda de viagens com a rotina solitária de escritor.

 
Em “Livro”, o objeto do título conduz a narrativa e é tratado com reverência. Isso é um reflexo da importância do livro em sua vida?

Sendo escritor, os livros são objetos que, necessariamente, me dizem muito. Também por isso, dar esse título a um romance foi algo que me trouxe um acréscimo grande de responsabilidade e que, por si só, demonstra bem a ambição depositada na concepção dessas páginas. O título fez parte das ideias fundadoras do romance. Assim, existem múltiplos fatores a contribuírem para o título, um deles é esse objeto que vai atravessando a narrativa. E que, no fundo, contém tantas vidas.


Você já declarou que há em “Livro” experiências da sua família que o excluíam. Como foi o processo de pesquisa?

Os meus pais foram emigrantes para a França e regressaram a Portugal pouco antes de eu nascer. Passei a infância a ouvi-los falar com as minhas irmãs de tudo o que tinham vivido e que me excluía. Assim, desenvolver esse tema foi escrever sobre um tempo anterior a mim que, no entanto, não está completamente desligado de mim. Até porque percebi que aquilo que define a minha geração em Portugal é sobretudo o que não vivemos. Não vivemos a revolução, a ditadura, a guerra colonial, a emigração em massa. Ao escrever, percebi que esse aparente desprendimento podia ser uma vantagem, uma vez que me permitia escrever sem constrangimentos sobre temas que, ainda hoje, não são fáceis para os portugueses (e talvez por isso não existam outros romances a deterem-se diretamente neste tema que afetou milhões de portugueses). Assim, servi-me da minha experiência pessoal como alguém que nasceu numa pequena cidade do interior (Galveias) para descrever a vida pobre dos anos 1940, 50 e 60; servi-me de tudo o que ouvi sobre a emigração ilegal para a França nos anos 1960 e de tudo aquilo que pude ler.


As críticas a “Livro” que o narrador tece são uma defesa prévia das que poderiam surgir? Como lida com a crítica?

Não. A crítica ao próprio livro é uma forma de a narrativa se dobrar sobre si e criar uma espécie de nó que, nesse momento, tem a função de aprofundar a autorreferencialidade, um mecanismo importante a partir de certa altura do livro. Hoje, com quatro romances, três livros de poesia e quatro volumes de narrativa publicados, lido bem com a crítica. Interessa-me bastante a análise que fazem do que escrevo e, sempre que posso, leio.

As transformações causadas pelos e-readers contribuem para essa relação nostálgica com o livro? Você é um usuário de leitores eletrônicos?

Há uma reflexão no romance acerca do objeto livro e daquilo que o define. Será o livro um objeto ou o sentido daquilo que diz? Por vezes, leio livros em formato eletrônico, mas prefiro o convencional. Ainda assim, o que mais me preocupa não é a mudança. O que me incomoda é que traga alterações à forma de ler. Creio que isso já se sente. Espero que a leitura continue por anos a ser a imersão num mundo, e não um saltitar fragmentado, com déficit de atenção, ansioso por informação dita “útil”.

Você interage com os leitores por meio de ferramentas como o Facebook. Isso muda sua maneira de trabalhar?

Tudo aquilo que influencia a minha vida terá influência na minha maneira de trabalhar. O contato com as pessoas que leem o que escrevo é algo que acaba por ser bastante marcante. Procuro esse contato. Acredito na desmistificação do escritor e, ao mesmo tempo, acredito no papel principal que o leitor tem na construção da obra. Sem leitor, o texto é como aquela árvore que, no enigma zen, cai na floresta. Será que faz barulho? Meu palpite é que não.

As declarações recentes do secretário português Francisco José Viegas sobre a necessidade de alterações na reforma ortográfica causaram polêmica no Brasil. Na sua opinião, Portugal deve ou não respeitar o acordo?

Esse é um assunto que me interessa muito pouco. Os desafios que a escrita me coloca não são ao nível da ortografia. No Portugal contemporâneo, há assuntos mais importantes a debater. Continuo a escrever com a ortografia de sempre. Em algumas publicações onde colaboro, já se adotou a nova ortografia, permito que corrijam os textos, pouco me importa. Não sou agarrado ao “c” antes do “t”. Ainda assim, nos livros, onde tenho o poder de decisão, mantenho a ortografia original.

Como vê o futuro de Portugal? Há risco de a emigração em massa, um dos principais temas de “Livro”, voltar a ser um problema?

A emigração já é uma realidade em Portugal. Sobretudo entre os jovens, há muita gente a procurar noutros países o que não encontra aqui. Esse é um aspecto que me preocupa bastante. Não creio que seja assim que o país se reconstruirá. Somos um país com mais de oito séculos de história porque, nos momentos mais críticos, o povo português tem sido capaz de defender os seus interesses.

Você é um escritor-viajante, sempre ocupado com a promoção dos livros pelo mundo. Como concilia as viagens e o tempo para escrever?

Um ano após a publicação do meu primeiro romance começaram a surgir traduções dos meus livros. Depois, ganhei o Prêmio José Saramago, tive mais uma série de reconhecimentos e os meus livros começaram a ser publicados em muitos países. Hoje, tenho romances em 20 idiomas. Esse reconhecimento faz com que surja um grande número de convites para encontros ou leituras públicas. Tento organizá-los em dois períodos. Assim, há ocasiões em que faço muitas viagens e há outras em que fico em casa, a escrever e a pensar. Creio que as viagens e a escrita se alimentam: as viagens são-me úteis para a escrita, porque me permitem conhecer novas realidades, aumentar a minha visão do mundo, relativizar aquilo que poderia tomar proporções desmedidas; e a escrita é-me útil para as viagens na medida em que as proporciona e me ajuda a prestar a atenção devida aos detalhes de cada lugar. Ao mesmo tempo, é para mim muito gratificante chegar a países pela primeira vez e encontrar já muitos leitores. Na semana passada, fiz quatro apresentações na região da Bretanha, na França e, depois, uma leitura e duas apresentações em Luxemburgo. Já estive também em algumas das maiores feiras literárias do mundo, como a Flip. E fiz palestras em grande parte das universidades mais prestigiadas. Nada mau para um menino que nasceu numa pequena cidade do interior, com cerca de mil habitantes, e que viveu lá até os 18 anos.

Como será sua participação na Flip?

Farei uma leitura de “Morreste-me”, o primeiro livro que publiquei, em maio de 2000. Trata-se de um livro fundamental para mim. Escrevi-o após a morte do meu pai e trata, justamente, do amor entre filho e pai. É um texto curto, com cerca de 40 páginas, e, apesar de ser um livro de prosa, utiliza uma linguagem muito próxima da poesia, o que ajuda a condensação desse tema tão intenso. Esta será a primeira vez em que farei uma leitura completa desse livro. Acredito que será um momento muito intenso e espero ter a oportunidade de partilhá-lo com um grande público apaixonado pelas palavras. Tenho essa expectativa, porque já conheço a Flip e sei o quanto é especial o público que a frequenta.

E quais são os autores brasileiros que chamam a sua atenção?

Posso citar Guimarães Rosa ou Clarice Lispector como nomes que me marcaram de forma indelével ou, na contemporaneidade, Milton Hatoum e Bernardo Carvalho. Mas ficam a faltar muitos outros. A literatura brasileira passada e presente é muito rica.

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