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Recortes sobre José Luís Peixoto e a sua obra.
José Luís Peixoto: a desmistificação de um escritor
Fenômeno na Europa, autor português lança ‘Livro’ no Brasil e confirma ida à Flip
Ele tinha 25 anos quando publicou seu primeiro livro, “Morreste-me”, um monólogo sobre o luto, dirigido ao pai que perdera. A edição de autor, com letras pequenas para economizar páginas, foi feita para os amigos ou, se tanto, para ser vendida em consignação. No mesmo ano (2000), lançou “Nenhum olhar”, pelo qual levaria o Prêmio José Saramago, dado a jovens autores.
Doze anos e mais de dez livros depois, José Luís Peixoto, considerado um dos mais importantes escritores portugueses contemporâneos, voltará em julho à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) — onde esteve pela primeira vez em 2005 — para uma inédita leitura integral daquele primeiro despretensioso trabalho, que acabou tendo mais de 20 edições. O Brasil será só uma das paradas na maratona em que se transformou a rotina desse autor de 37 anos, que hoje trabalha a divulgação simultânea de três obras: “Livro”, de 2010, que chega ao Brasil agora, pela Companhia das Letras; “Abraço”, publicado em Portugal no fim de 2011; e seu primeiro infantil, “A mãe que chovia”, que estará em abril nas livrarias portuguesas. Em comum, o tom biográfico que levara ao extremo em “Morreste-me”.
“Livro”, embora menos melancólico, começa falando de solidão, ao descrever o tristíssimo abandono de um menino de 6 anos, para mais tarde entrar na trama em que de fato se apoia: a emigração de portugueses para a França nos anos 1960, vivida pelos pais de Peixoto. Uma segunda parte ajuda a explicar o título — voltando-se para si própria, a obra dá voz ao narrador da história inicial, chamado Livro, um personagem que confunde para depois esclarecer. Na entrevista abaixo, Peixoto fala sobre “Livro”, considerado seu trabalho mais maduro, e explica como concilia a intensa agenda de viagens com a rotina solitária de escritor.
Em “Livro”, o objeto do título conduz a narrativa e é tratado com reverência. Isso é um reflexo da importância do livro em sua vida?
Sendo escritor, os livros são objetos que, necessariamente, me dizem muito. Também por isso, dar esse título a um romance foi algo que me trouxe um acréscimo grande de responsabilidade e que, por si só, demonstra bem a ambição depositada na concepção dessas páginas. O título fez parte das ideias fundadoras do romance. Assim, existem múltiplos fatores a contribuírem para o título, um deles é esse objeto que vai atravessando a narrativa. E que, no fundo, contém tantas vidas.
Você já declarou que há em “Livro” experiências da sua família que o excluíam. Como foi o processo de pesquisa?
Os meus pais foram emigrantes para a França e regressaram a Portugal pouco antes de eu nascer. Passei a infância a ouvi-los falar com as minhas irmãs de tudo o que tinham vivido e que me excluía. Assim, desenvolver esse tema foi escrever sobre um tempo anterior a mim que, no entanto, não está completamente desligado de mim. Até porque percebi que aquilo que define a minha geração em Portugal é sobretudo o que não vivemos. Não vivemos a revolução, a ditadura, a guerra colonial, a emigração em massa. Ao escrever, percebi que esse aparente desprendimento podia ser uma vantagem, uma vez que me permitia escrever sem constrangimentos sobre temas que, ainda hoje, não são fáceis para os portugueses (e talvez por isso não existam outros romances a deterem-se diretamente neste tema que afetou milhões de portugueses). Assim, servi-me da minha experiência pessoal como alguém que nasceu numa pequena cidade do interior (Galveias) para descrever a vida pobre dos anos 1940, 50 e 60; servi-me de tudo o que ouvi sobre a emigração ilegal para a França nos anos 1960 e de tudo aquilo que pude ler.
As críticas a “Livro” que o narrador tece são uma defesa prévia das que poderiam surgir? Como lida com a crítica?
Não. A crítica ao próprio livro é uma forma de a narrativa se dobrar sobre si e criar uma espécie de nó que, nesse momento, tem a função de aprofundar a autorreferencialidade, um mecanismo importante a partir de certa altura do livro. Hoje, com quatro romances, três livros de poesia e quatro volumes de narrativa publicados, lido bem com a crítica. Interessa-me bastante a análise que fazem do que escrevo e, sempre que posso, leio.
As transformações causadas pelos e-readers contribuem para essa relação nostálgica com o livro? Você é um usuário de leitores eletrônicos?
Há uma reflexão no romance acerca do objeto livro e daquilo que o define. Será o livro um objeto ou o sentido daquilo que diz? Por vezes, leio livros em formato eletrônico, mas prefiro o convencional. Ainda assim, o que mais me preocupa não é a mudança. O que me incomoda é que traga alterações à forma de ler. Creio que isso já se sente. Espero que a leitura continue por anos a ser a imersão num mundo, e não um saltitar fragmentado, com déficit de atenção, ansioso por informação dita “útil”.
Você interage com os leitores por meio de ferramentas como o Facebook. Isso muda sua maneira de trabalhar?
Tudo aquilo que influencia a minha vida terá influência na minha maneira de trabalhar. O contato com as pessoas que leem o que escrevo é algo que acaba por ser bastante marcante. Procuro esse contato. Acredito na desmistificação do escritor e, ao mesmo tempo, acredito no papel principal que o leitor tem na construção da obra. Sem leitor, o texto é como aquela árvore que, no enigma zen, cai na floresta. Será que faz barulho? Meu palpite é que não.
As declarações recentes do secretário português Francisco José Viegas sobre a necessidade de alterações na reforma ortográfica causaram polêmica no Brasil. Na sua opinião, Portugal deve ou não respeitar o acordo?
Esse é um assunto que me interessa muito pouco. Os desafios que a escrita me coloca não são ao nível da ortografia. No Portugal contemporâneo, há assuntos mais importantes a debater. Continuo a escrever com a ortografia de sempre. Em algumas publicações onde colaboro, já se adotou a nova ortografia, permito que corrijam os textos, pouco me importa. Não sou agarrado ao “c” antes do “t”. Ainda assim, nos livros, onde tenho o poder de decisão, mantenho a ortografia original.
Como vê o futuro de Portugal? Há risco de a emigração em massa, um dos principais temas de “Livro”, voltar a ser um problema?
A emigração já é uma realidade em Portugal. Sobretudo entre os jovens, há muita gente a procurar noutros países o que não encontra aqui. Esse é um aspecto que me preocupa bastante. Não creio que seja assim que o país se reconstruirá. Somos um país com mais de oito séculos de história porque, nos momentos mais críticos, o povo português tem sido capaz de defender os seus interesses.
Você é um escritor-viajante, sempre ocupado com a promoção dos livros pelo mundo. Como concilia as viagens e o tempo para escrever?
Um ano após a publicação do meu primeiro romance começaram a surgir traduções dos meus livros. Depois, ganhei o Prêmio José Saramago, tive mais uma série de reconhecimentos e os meus livros começaram a ser publicados em muitos países. Hoje, tenho romances em 20 idiomas. Esse reconhecimento faz com que surja um grande número de convites para encontros ou leituras públicas. Tento organizá-los em dois períodos. Assim, há ocasiões em que faço muitas viagens e há outras em que fico em casa, a escrever e a pensar. Creio que as viagens e a escrita se alimentam: as viagens são-me úteis para a escrita, porque me permitem conhecer novas realidades, aumentar a minha visão do mundo, relativizar aquilo que poderia tomar proporções desmedidas; e a escrita é-me útil para as viagens na medida em que as proporciona e me ajuda a prestar a atenção devida aos detalhes de cada lugar. Ao mesmo tempo, é para mim muito gratificante chegar a países pela primeira vez e encontrar já muitos leitores. Na semana passada, fiz quatro apresentações na região da Bretanha, na França e, depois, uma leitura e duas apresentações em Luxemburgo. Já estive também em algumas das maiores feiras literárias do mundo, como a Flip. E fiz palestras em grande parte das universidades mais prestigiadas. Nada mau para um menino que nasceu numa pequena cidade do interior, com cerca de mil habitantes, e que viveu lá até os 18 anos.
Como será sua participação na Flip?
Farei uma leitura de “Morreste-me”, o primeiro livro que publiquei, em maio de 2000. Trata-se de um livro fundamental para mim. Escrevi-o após a morte do meu pai e trata, justamente, do amor entre filho e pai. É um texto curto, com cerca de 40 páginas, e, apesar de ser um livro de prosa, utiliza uma linguagem muito próxima da poesia, o que ajuda a condensação desse tema tão intenso. Esta será a primeira vez em que farei uma leitura completa desse livro. Acredito que será um momento muito intenso e espero ter a oportunidade de partilhá-lo com um grande público apaixonado pelas palavras. Tenho essa expectativa, porque já conheço a Flip e sei o quanto é especial o público que a frequenta.
E quais são os autores brasileiros que chamam a sua atenção?
Posso citar Guimarães Rosa ou Clarice Lispector como nomes que me marcaram de forma indelével ou, na contemporaneidade, Milton Hatoum e Bernardo Carvalho. Mas ficam a faltar muitos outros. A literatura brasileira passada e presente é muito rica.
José Luís Peixoto.“A Coreia do Norte tem mais de nazismo que de estalinismo”
Graças às comemorações do 100.º aniversário de Kim Il-sung, o escritor português conseguiu ir à Coreia do Norte para uma visita rara que deu um livro: “Dentro do Segredo” já está nas bancas
Manuel Vicente
“Ultimate Mega Tour” foi o nome do pacote que José Luís Peixoto comprou à agência chinesa que organiza viagens à Coreia do Norte assim que a ideia de visitar o país se cimentou. Antes de passar a fronteira (por onde também não passam telemóveis estrangeiros nem livros) para entrar na sociedade mais fechada do mundo, o escritor assinou o compromisso de não escrever nada sobre o país. Mentira piedosa animada por “D. Quixote de La Mancha”, o livro que levou escondido na mala e que esteve para ser o fio condutor de “Dentro do Segredo”.
Acabou por não ser. Mas o relato inédito da experiência – da gastroenterite que apanhou por beber água do poço da casa de infância de Kim Il-sung a nunca ter visto dinheiro a ser usado – vale por si só.
Porquê ir à Coreia do Norte?
O grande motivo foi justamente encontrar um desafio que me estimulasse, a possibilidade de ir a um país à partida de tão difícil acesso. E foi uma paixão assim que me permiti ter esse sonho.
Antes de ir, morre Kim Jong-il.
A verdade é que – agora ando com esta coisa de dizer “a verdade é”. Ignorar [diz para o gravador]. O que acontece, ou como diriam os tipos dos reality shows ‘É assim’ [risos], na Coreia do Norte a liderança de Kim Jong-il era importantíssima. Aqui em Portugal acredito que a sua morte tenha sido apenas uma curiosidade da política internacional, mas a mim disse--me muito, porque já tinha diligências feitas para ir e a morte pôs o país – e a minha viagem – numa grande interrogação.
O que esperava antes de ir?
Tinha tudo a ver com o que lia sobre a Coreia do Norte, existem informações contraditórias sobre a realidade efectiva do país. Havia até coisas que achava que não iam acontecer da forma como aconteceram. Acabei por ser surpreendido pela positiva, porque ia preparado para uma realidade ainda mais fechada. Se bem que, a partir de certa altura – e isso nota-se no livro – comecei a quebrar.
Pela falta de ligação ao exterior?
Exacto, e pela opressão que estava sempre presente em todos os momentos, desde que acordava até ao fim do dia.
Só a sua mãe e irmã é que sabiam onde ia e no livro diz lamentar não ter podido contar aos seus filhos. São novos?
Um tem 15 anos e é muito interessado em política internacional. E o outro tem oito.
Porque decidiu não lhes contar?
Achei que podiam não compreender. Mesmo com o mais velho temi que pudesse perturbá-lo. Associamos a Coreia do Norte a um país que envolve alguns riscos e confesso que, a partir do momento da morte de Kim Jong-il, também senti que podia haver riscos. E a viagem foi feita num momento de tensão em torno do lançamento de um foguete que o Estado norte-coreano dizia estar destinado a pôr um satélite em órbita.
Que foi um lançamento falhado.
Mas que foi feito e feito contra os Estados Unidos, que não só avisaram a Coreia do Norte que não o fizesse como ameaçaram com sanções que se vieram a verificar. EUA, Japão e Coreia do Sul temiam que pudessem ser testes nucleares.
No livro fala em ameaças latentes aos turistas em caso de desrespeito das regras, que não se concretizaram.
Eram sobretudo decorrentes do medo de cada um e do que cada um tinha lido sobre a Coreia do Norte, nuncaeram efectivas. Embora fosse visível um certo terror no olhar dos guias face a esse desrespeito.
Sabia que não podia levar livros?
Soube mesmo já na fronteira.
Mesmo assim levou o D. Quixote.
Confesso que, apesar de ir contra as regras, via o D. Quixote como uma infracção menor. Para já, porque era em português, uma língua muito pouco acessível na Coreia do Norte [risos]. Mas também porque é uma obra literária de referência, não é propriamente um texto subversivo ou que possa ser visto como ofensivo, embora seja um livro proibido como qualquer outro, e isso acaba por ser impressionante. É até uma lição, porque aquele país ignora completamente o meu mundo. Nenhuma obra literária de referência está disponível. Todos os livros publicados são propagandísticos. Até refiro isso de passagem no livro, a propósito de uma visita a uma livraria em Pyongyang, a livraria internacional...
Onde comprou alguns livros...
Muitos. Mais que os que refiro.
Propagandísticos?
Pois [risos]. De biografias dos líderes a outros. Mas achei que o “D. Quixote” faria sentido do ponto de vista do paralelismo. Já tinha lido o livro, mas levei a versão do Aquilino Ribeiro, que nunca tinha lido e que foi editada aqui, curiosamente [pela Bertrand]. Aliás, pedi-lhes essa edição e eles não sabiam para que a queria e depois ficaram surpreendidos ao saber que ela foi à Coreia do Norte e veio. Em certo momento até achei que podia ser interessante escrever este livro estabelecendo um paralelismo com a leitura de D. Quixote. Por outro lado,também quis levá- -lo porque supunha que iria sentir saudades da língua portuguesa e o Aquilino Ribeiro tem todo esse aconchego.
No início do livro diz que, enquanto estamos a lê-lo, estará com o seu advogado a tentar reverter o compromisso de não escrever nada sobre a viagem.
No momento em que escrevi essas palavras elas eram reais, quando acabei de escrever o livro já não eram. Mas decidi mantê-las porque achei interessante essa chamada ao presente. Foi angustiante em alguns momentos, mas depois de voltar e já no processo de escrita percebi que poderia fazê-lo.
Para já não teve problemas.
Mas se o livro acabar por ser traduzido terá repercussões diferentes. Em Portugal não temos embaixada da Coreia do Norte, mas noutros países existem e é sabido que é através delas que se estabelece o controlo do que é feito fora do país. Vamos ver. Para já estou tranquilo.
É interessante quando, a dada altura, começa a aperceber-se da liberdade das crianças em Pyongyang, que contrasta com tudo o resto que descreve.
Sim. A Coreia do Norte tem uma sociedade única, muito repressiva em quase todos os momentos, mas as pessoas têm de viver. E por isso existem escapes que fazem com que a vida seja possível e, em muitos aspectos, até agradável. Sobretudo em Pyongyang, vê-se que a vida decorre de forma serena e agradável. Para já, as pessoas não conhecem o mundo fora da Coreia do Norte e a construção que lhes é apresentada desse mundo é pintada com cores muito negativas. A maioria das pessoas acredita que vive no país mais desenvolvido do mundo. E depois existem efectivamente alguns aspectos da vida social mais ligeiros do que aqui. Quem tem filhos sabe que se os perder de vista durante um minuto a angústia é grande. E na Coreia do Norte isso não se sente dessa forma.
Também por ser militarizada?
Sim, acho que se pode fazer esse paralelismo, mas há outras circunstâncias a contribuir para isso, até a própria cultura. Por exemplo o aspecto do trânsito: não há quase nenhum, nem na capital.
E nunca se vê ninguém usar dinheiro.
Sim. Além de um conjunto de notas fora de circulação à venda como recordação, que eu por acaso comprei, nunca vi dinheiro a ser usado. Mas houve um momento que optei por não referir no livro porque achei que podia ser… Constrangedor não é a palavra, podia ser algo perigoso...
Que momento foi?
Uma pessoa da Coreia do Norte que propôs de uma forma disfarçada que podíamos comprar-lhe notas em circulação. Eu não fiz isso, não as comprei, achei que não valia a pena correr o risco. Não sou coleccionador de notas nem iria fazer nada com elas. Mas é verdade que isso foi uma coisa que me chamou muito a atenção. Lá praticamente não há comércio, é muito escasso, às vezes existem pequenas bancas, a maior parte apenas tabuleiros com coisas em cima, duas ou três peças de fruta, cigarros, garrafas de bebida...
Também não há papéis no chão.
Em sítio nenhum. Nem beatas!
Mas vêem-se pessoas a fumar.
Sim, os coreanos fumam muito e em todos os lugares. No avião para Pyongyang, no comboio... Como era antes aqui. Os cigarros imagino que não sejam atribuídos pelo Estado, mas a maior parte dos bens, seja comida, seja vestuário, são. Porque não é claramente às lojas que as pessoas vão buscar os alimentos. Já a roupa é muito limitada, a maioria das pessoas tem roupas muito semelhantes, muitas vezes próximas do uniforme militar.
O seu grande arrependimento na viagem foi beber do poço de Kim Il-Sung?
[Risos] Sim, sim!
Mas não chegou a ir ao hospital.
Não, nunca. Em todos os momentos senti que a má disposição ia passar, como efectivamente passou, mas é irónico que tenha acontecido no poço da casa de infância do Kim Il-sung, A verdade é que isso também mostra como uma visita à Coreia do Norte anda sempre à volta desses temas. Há um momento no livro em que falo do cansaço que sentia ao ouvir o nome dos líderes, porque era permanente. Em todos os momentos. Há um documentário da National Geographic sobre a Coreia do Norte em que uma jornalista acompanhou um médico indiano que foi fazer tratamentos às cataratas de pessoas que tinham cegado e um momento muitíssimo impressionante é quando tiram as vendas às pessoas que foram operadas. A primeira coisa que todos eles fazem é dar graças a Kim Jong-il e dizer que agora felizmente já têm a visão restabelecida para o poder ver e venerar. Isso é, de certa maneira, uma imagem muito poderosa do que é a vivência do culto da personalidade na Coreia do Norte, que ultrapassa tudo o que eu já vi do ponto de vista de cultos, até religiosos. E eu cheguei
há duas semanas da Índia, onde as pessoas acreditam que vão reencarnar.
Diz que, ao contrário do que se pensa, a Coreia do Norte não é o último reduto estalinista.
Acho que é o último e o primeiro reduto de algo que terá muito mais a ver com o nazismo do que com qualquer outro regime conhecido, porque existem do ponto de vista ideológico marcas nacionalistas evidentes em todos os aspectos e momentos da vida do país. E depois existe também um discurso racista que diverge bastante do discurso estalinista. Os inimigos do país, como os EUA, eram sempre retratados traçando uma diferença importante entre os líderes e o povo, mas no caso da Coreia do Norte as qualidades negativas são atribuídas tanto aos líderes como à população. Aliás, existem representações de crianças americanas ou japonesas em
que surgem desfiguradas e com um aspecto assassino.
O que mudou no seu imaginário do país agora que lá foi e voltou?
Continuo a alimentar esse imaginário, porque há muito que não vi e há muito que só posso imaginar. Mas ao mesmo tempo tornou-se um lugar muito mais concreto. Recordo o olhar das pessoas que lá ficaram e isso traz uma certa dor, parecida com aquela que trago comigo quando visito prisões. A sensação de sair e saber que eles continuam lá.
Agora o seu filho mais velho já sabe que o pai foi à Coreia do Norte.
E ficou muito surpreendido e impressionado ao saber que alguns telefonemas que recebeu vinham de lá. Ele pensava que eu estava na China, que já é um lugar distante e misterioso, mas a Coreia do Norte supera esse fascínio. No livro digo que os meus filhos, até os meus netos, um dia vão ter curiosidade de saber como foram estas aventuras e acho que este livro é um bocado isso, um documento do que é a Coreia do Norte e também do que é ser eu, porque vem tudo do interior dos meus pensamentos.