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Sol, 6 novembro de 2014

24.02.15

Vestido de negro e ouvinte de música pesada era olhado com estranheza pelos habitantes de Galveias, a vila alentejana onde nasceu há 40 anos. Desde então, José Luís Peixoto mudou-se para Lisboa, onde fez a faculdade, participando activamente nos movimentos estudantis, e começou a escrever. Recebeu o Prémio Saramago em 2001 pelo seu primeiro romance, 'Nenhum Olhar', e tornou-se um dos mais destacados e bem-sucedidos autores da sua geração. Conhece meio mundo, por onde tem viajado com os livros e em reportagem mas regressou às origens e acaba de lançar 'Galveias', o seu quinto romance

 

Desde 2010, com 'Livro', que não publicava um romance. Acaba de lançar 'Galveias', sobre a terra onde nasceu. Como surgiu?

Penso muito em termos de romances. Tenho outros projectos pelo meio mas os pilares do que faço são os romances. E quatro anos tem sido o tempo entre eles. O tema aqui tratado já o foi noutros livros e textos que escrevi. Tem que ver com a região e com a vida de uma pequena comunidade rural. Realidade que estava presente tanto em Livro como em Nenhum Olhar, mas de forma diferente, com outra perspectiva e outras cores, porque o tema central era outro. A partir de certa altura surgiu a ideia de fazer algo diferente: nomear e concretizar. O título talvez tenha sido a minha primeira ideia. Depois veio o resto. Galveias tenta ser universal sendo particular. Tudo é nomeado. Foi fazer o caminho inverso. Em Nenhum Olhar nem o Alentejo nem Portugal são nomeados.

 

Lançou o romance em Galveias. Como foi a reacção das pessoas?

Óptima. Galveias é um local pouco noticiado, as pessoas gostam de ver as referências que lhe faço. Com um livro que lhe é exclusivamente dedicado, com Galveias no título, esse impacto foi maior. O lançamento foi um momento inesquecível para mim. Foi muito tocante ver todas as pessoas que constituem o mundo da minha infância e adolescência ali reunidas. E foi tocante fazer o que tinha antecipado enquanto escrevia o romance: oferecê-lo a Galveias. É um livro com a ambição de poder ser lido por qualquer pessoa em qualquer lugar. Mas vai sempre ser lido de maneira diferente ali, pelas pessoas que conhecem as ruas e as gentes.

 

Como foi crescer em Galveias?

Na adolescência não foi fácil. Na infância foi um enorme privilégio. Tinha total liberdade, todas aquelas ruas e campos estavam disponíveis para brincar. E eu utilizava-os com os meus amigos. Tinha acesso a experiências que hoje são difíceis de ter, como o contacto com a natureza. Naquele tempo íamos roubar fruta e os donos ficavam zangados e perseguiam-nos. Hoje a fruta cai das árvores sem que ninguém a colha. Os donos pedem às pessoas para a levar. Na altura os campos não tinham vedações. Hoje estão todos vedados. Entrávamos em qualquer propriedade e fazíamos todo o tipo de brincadeiras. O meu pai era carpinteiro e tinha uma serração de madeiras. Fazíamos brinquedos com pedaços de madeira e andávamos por lá. No Verão podíamos andar na rua até tarde, sem supervisão. Hoje, mesmo em Galveias, os pais vão levar as crianças à escola. Eu ia sozinho desde os seis anos.

 

Começa o livro dizendo que é filho do Peixoto da serração e da Alzira Pulguinhas. Era assim que era conhecido?

Essa é uma pergunta muito vulgar: 'De quem és filho?'. Hoje sou eu que a faço quando vou lá porque não conheço as crianças (ainda há algumas, ainda existe escola). Às vezes até lhes consigo identificar as parecenças mas, para as identificar, pergunto de quem são filhas. Era uma pergunta que me faziam muitas vezes. Uma resposta que também podia ser dada a essa pergunta seria: eu sou filho de Galveias.

 

Passava os dias com os seus amigos ou com os seus irmãos?

Tenho duas irmãs mais velhas, uma com mais oito anos, outra com mais 13 anos. Elas já eram crescidas, eu era um rapaz. Brincava com os amigos das ruas onde vivia. Nessa altura as ruas estavam cheias de crianças. Mesmo cheias. Jogávamos à bola na rua com as balizas feitas de pedras ou num campo com uma árvore no meio, a Azinhaga do Espanhol, que hoje já tem casas.

 

O mundo descrito no livro era o seu?

Sim. Nessa altura quando saía em excursão se alguém de fora me perguntava de onde eu era, respondia que era das Galveias, convencido de que toda a gente conhecia Galveias. Não tinha outro mundo. Até que na adolescência começou a custar-me estar lá, tinha perspectivas e interesses muito distantes daquela realidade. Desde o início da adolescência que tenho grande vocação para a música pesada. E nessa altura fiz uma banda chamada Hipocondríacos. O que foi chocante para as pessoas de lá. E comecei a deixar crescer o cabelo, a minha mãe tinha um desgosto de eu ter o cabelo comprido. Eu tinha que lidar com os olhares dos velhos nas carroças quando ia para os ensaios com a banda, com a guitarra eléctrica… Hoje percebo que se não tivesse sido assim tudo teria sido diferente e o interesse pela escrita talvez nunca tivesse surgido.

 

Porquê?

Porque um dos aspectos fundamentais de uma infância e de uma adolescência em Galveias é a aprendizagem do tempo. Foi dela que veio a disponibilidade, a contemplação, a reflexão. Noutro lugar seria diferente. Mas, já se sabe, é sempre assim: se o passado não tivesse acontecido como aconteceu, o presente seria de outra maneira.

 

Onde fez o liceu?

Em Ponte de Sor, a 12 km. Foi uma abertura para outro mundo, ainda que com diferenças grandes em relação ao que é a vida em Lisboa. Mesmo na Escola Secundária não passava de meia dúzia o número de pessoas que escutavam música pesada. Fui criando o meu espaço e habitando esse espaço de interesses que faziam parte do meu pequeno mundo, como a música, a literatura e as artes em geral.

 

Cresceu numa casa com livros?

Em comparação com as casas dos meus amigos, a minha casa tinha livros. Estamos a falar de casas onde não existia nenhum livro. Nenhum. E, se existiam, eram os da escola. Na minha casa existiam alguns livros, não só por interesse dos meus pais, mas pelas minhas irmãs mais velhas. Por influência delas comecei a ter muito interesse por livros e fui lendo o que havia. A minha mãe tinha algumas colecções que conseguiu quando a sua irmã trabalhou na Bertrand. E mais tarde ia à biblioteca itinerante da Gulbenkian. O que foi uma grande libertação, porque tinha acesso a muitos livros. Escolhia com apoio da minha irmã e do bibliotecário, que era o meu dentista, em Abrantes, e que me dava sugestões avançadas para a minha idade, como poetas portugueses contemporâneos, como Nuno Júdice e Herberto Helder.

 

Que idade tinha quando os leu?

Onze, doze anos. Na altura também tive uma grande enfatuação pela Florbela Espanca, uma autora que me dizia muito porque era muito dramática, muito trágica e, ao mesmo tempo, se referia ao Alentejo. Era a minha realidade. Também sentia grande empatia pelo Urbano Tavares Rodrigues e outros autores do neo-realismo. Eram os livros que eu tinha em casa para ler. Aquele que considero o primeiro livro que li foi os Esteiros, do Soeiro Pereira Gomes.

 

Vestido de negro, cabelo comprido, fã de heavy metal, agarrado aos livros. Era olhado com estranheza?

Completamente. Foi uma boa aprendizagem para a vida. Enfrentar os olhares dos colegas na Escola Secundária deu-me calo para lidar com os olhares dos outros. Até tenho uma certa necessidade adolescente de provocar e enfrentar esses olhares. Confesso que me dá prazer, até por ser tão fácil provocá-los… Uma pequena coisa como um piercing ou uma tatuagem já é impressionante. Como se tivesse importância.

 

As pessoas referiam-se a si como o escritor dos piercings e das tatuagens. Isso já mudou?

Sim. Hoje ter piercings ou tatuagens é comum. Não é assim tão subversivo quanto isso. É uma coisa minha. Fiz os primeiros piercings aos 25 anos, as tatuagens aos 30. E tenho vontade de fazer mais.

 

Aos 18 anos entra na Universidade Nova, em Lisboa. Foi um grande choque?

Foi. Se bem que eu já estava a preparar isso. O 12.º ano foi o ano em que eu mais estudei e me apliquei. Não queria perder a possibilidade de entrar na faculdade. E sempre pensei em Lisboa, era o exemplo que eu tinha das minhas irmãs. Uma estudou na Faculdade de Letras, outra no Técnico. Cresci a vir visitá-las. E quando vim para Lisboa já tinha relações aqui estabelecidas por via da banda. Tínhamos gravado duas demotapes e trocávamos cassetes com outras bandas punk e hardcore da zona de Lisboa. Fiz grandes amizades. E aprendi muito, era uma área que privilegiava o 'faça você mesmo'. Em Galveias gravámos duas cassetes e distribuímo-las internacionalmente. Trocávamo-las pelo correio. Tínhamos um sistema em que reaproveitávamos os selos infinitamente… Existiam publicações ligadas a esse pequeno mundo. Anos depois ainda chegavam pedidos de cassetes da Polónia, da Suíça, do Brasil, dos EUA, da Escandinávia…

 

 

Era guitarrista?

Sim. O que atesta um pouco a qualidade da banda: eu não sei tocar guitarra.

 

E escrevia as letras das canções?

Algumas, partilhava isso com o vocalista. Eram letras simples, reivindicativas, politizadas, contra ou a favor de algo. Tive um empenhamento político forte e radical. Estava ligado a grupos anarquistas.

 

O que fazia?

Todo o tipo de coisas. Existia um movimento estudantil forte, com uma grande contestação ao financiamento do Ensino Superior. Se não estou em erro, as propinas passaram de 1.400 escudos para 40 contos anuais. Envolvi-me muito nisso e entrei na Associação de Estudantes. Participava activamente em todos os movimentos do associativismo estudantil, manifestações, cartazes, publicações, panfletos. Com dois amigos, criei uma associação chamada MATA, um movimento anti-tradição académica, que se insurgia contra as praxes. Propúnhamos alternativas e éramos bastante interventivos. Conheci pessoas pelas quais, ainda hoje, tenho uma admiração imensa. Algumas continuaram na área da política, como o Rui Tavares, outros são jornalistas.

 

E a escrita?

Ia publicando os meus textos no DN Jovem e, na faculdade, coordenava o suplemento literário da revista da associação de estudantes. E escrevia. A escrita estava já completamente entranhada na minha vida. Mas não tinha expectativas de vir a ser um escritor profissional. Ainda estava na faculdade quando comecei a escrever o meu primeiro livro, o Morreste-me, embora só o tenha publicado quatro anos depois.

 

Nesse livro fala sobre a morte do seu pai, figura muito presente na sua obra…

Ele tinha acabado de fazer 57 anos e eu 20. Durante três anos estivemos à espera de que ele morresse, os médicos tinham-lhe dado apenas três meses de vida. 'Morreste-me' marca a minha idade adulta na escrita e acompanha a entrada na idade adulta na vida. Mas a relação com o meu pai é complexa, tem muitas nuances, que noutros livros também estão presentes, mesmo quando não são evidentes.

 

Ao acabar a faculdade foi dar aulas?

Sim. Tive o meu primeiro filho quando acabei o curso e fui dar aulas. Primeiro na Lousã, depois perto de Oliveira do Hospital. Depois dei aulas em Cabo Verde um ano. Foi lá que acabei de escrever o meu primeiro romance, 'Nenhum Olhar', na Cidade de Praia. Com 'Morreste-me' ganhei o prémio dos Jovens Criadores. E fui participar numa Bienal de Jovens Criadores da CPLP em Cabo Verde. Foi impressionante e quis voltar para dar aulas. Fui e encontrei logo um lugar para dar aulas com estatuto de professor cabo-verdiano. Foi um ano muito intenso. Dava dois horários completos, 50 horas semanais, a turmas a partir do 10.º ano, com mais de 40 alunos, com um alto nível de maturidade. Muitos já eram pais. Não existia o desafio nem a provocação constante que se sente nas escolas portuguesas. Os alunos tinham consciência de que estar ali era uma oportunidade.

 

Foi a primeira experiência fora do país?

Sim, nunca voltei a estar tanto tempo sem vir a Portugal. Quando voltei tinha o meu primeiro romance escrito e a convicção de que o queria publicar. De forma humilde comecei a enviar o livro pelo correio para editoras. Felizmente foi lido pela Maria do Rosário Pedreira, que estava na Temas e Debates a formar uma colecção de autores portugueses. O 'Nenhum Olhar' foi um dos primeiros livros dessa colecção. Teve uma recepção impressionante ao nível da crítica e um ano depois ganhou o Prémio Saramago. E iniciou-se este caminho.

 

Tudo isso surpreendeu-o?

E ainda surpreende. Fiquei assoberbado com o que estava a acontecer. Eram muitas solicitações e eu gosto de dizer que sim. Foi muito mais do que estava à espera. Hoje, quase 15 anos depois, já faço uma melhor gestão de tudo.

 

Como foi lidar com o sucesso?

Estava a experimentar com responsabilidades associadas. Tinha uma peça de teatro com estreia marcada no teatro da Bastilha, em Paris, e nunca tinha escrito uma peça de teatro. Músicos pediam-me letras e eu nunca tinha escrito uma letra. No ano passado convidaram-me para escrever um guião ['Entre As Mulheres'] e passados poucos meses estava a passar na RTP. Exige sangue-frio. Mas não tenho razão de queixa. Todo este caminho tem sido feito de privilégios. Só posso estar grato por tudo o que me tem acontecido. A situação em que me encontro é incrível e muito melhor do que alguma vez poderia ter imaginado. Posso escrever os livros que quero. Tenho leitores com vontade de os ler. Viajo com esses livros e encontro leitores em lugares que nunca imaginei. É fascinante.

 

Deixou de dar aulas ao primeiro livro?

Sim. No princípio de uma forma arriscada, colaborava apenas nalguns meios da imprensa. Mas a partir do momento em que recebi o Prémio Saramago, um prémio monetário substancial, criei a possibilidade de conquistar um espaço profissional. Mas trata-se de um percurso independente, não tenho uma entidade patronal. Tive de o construir. Hoje os meus livros são bem recebidos em Portugal e noutros países, o que me permite viver deles. Mas nas Galveias, onde as pessoas não conhecem outros escritores, e mesmo fora, as pessoas pensam que, economicamente, a minha vida é muito mais desafogada do que realmente é. Acham que quem aparece na televisão tem uma vida que corresponde a esse glamour. Essa não é a realidade. Nem para mim, nem para muita gente. Posso garantir a educação e a vida dos meus filhos e a minha própria. O que já não é mau, se pensarmos que isso vem da escrita, área que a maioria das pessoas deste país não está habituada a valorizar economicamente.

 

Em que sentido?

É constante o número de solicitações e pedidos para fazer as mais determinadas tarefas sem qualquer espécie de pagamento. E se alguém falar nisso é logo tido como um mercenário. Como se os canalizadores ou os polícias não recebessem pelo seu trabalho. Ir falar a algum lado sobre um tema escolhido por outros não é propriamente um prazer. É trabalho. Tal como escrever sobre um tema que me propõem. Mas ainda ontem escrevi dois textos nessas condições. E tenho muitos lá em casa à espera de serem escritos.

 

E por que aceita?

Porque nem tudo é dinheiro. Há muitos trabalhos que não são remunerados mas que recompensam ao nível de satisfação. Este ano participei num projecto que consistiu numa grande exposição no aeroporto de Lisboa, em parceria com o ilustrador Hugo Makarov. Tivemos trabalho, estivemos várias vezes no aeroporto e, no entanto, não fomos remunerados. O que é que ganhámos com isso? O prazer de saber que aquele trabalho é visto por milhares de pessoas que nunca iriam contactar com nada do que fazemos. Se estivermos a falar de convites de escolas e bibliotecas, então aí não há nenhuma espécie de remuneração. Fica o prazer.

 

Foi dos primeiros autores em Portugal a ter a cara num cartaz publicitário. Há quem diga que é um fenómeno de marketing. Isso incomoda-o?

Não. Cada um tem direito à sua opinião. Mas a minha obra fala por si própria. Fico surpreendido com os milhares de exemplares que os meus livros vendem. E os meus livros são intrinsecamente anticomerciais, na medida em que pela sua estrutura, tema e trabalho não têm nada que ver com thrillers ou literatura de fácil absorção. Portugal, em função da sua tradição, tem hábitos de leitura com uma certa elevação. O país deu um imenso salto em termos de educação nestas décadas. Temos uma classe média intelectual com um excelente nível e que não deve nada a ninguém, avalia por si e faz a sua leitura. Naturalmente que tenho a minha confiança e auto-estima muito elevada em relação à qualidade do que faço porque os meus livros têm críticas altamente elogiosas no suplemento Babelia do El País, no Times Literary Supplement, no Guardian, no Independent, na Folha de São Paulo, no New York Times, no Le Monde, no Figaro, no La Repubblica. O meu último romance foi finalista do Prémio Femina, em França, um dos mais prestigiados prémios para autores estrangeiros na Europa. E ainda não tinha 40 anos quando isso aconteceu. Não tenho nada a provar.

 

É um meio literário pequeno, o português?

Não. Queixamo-nos das nossas dimensões mas são elas que nos salvam. Existe coesão, tem um tamanho humano. É como Lisboa em comparação com outras cidades do mundo. É uma grande cidade à nossa escala mas tem uma dimensão humana, não é São Paulo, não é Deli. O meu trabalho integra-se na literatura portuguesa contemporânea, tenho consciência dela. Mas acho que quem escreve tem de manter distanciamento desse meio, envolver-se é criar uma teia de relações que não ajuda a algo fundamental: a independência e isenção. O grande compromisso tem que ser com a literatura. Não com o meio literário.

 

Está traduzido em 19 idiomas. O seu livro mais traduzido é o 'Nenhum Olhar'. Há uma universalidade naquele Alentejo?

Há um certo paradoxo. Acho que quanto mais se especifica, quanto mais se fala do que é nosso, mais tocamos no que também é dos outros. Com o 'Nenhum Olhar' tive oportunidade de assistir a um aspecto fascinante: o carácter transnacional da ruralidade. A ruralidade do Alentejo tem muitas especificidades, como a roupa tradicional. No entanto, a ruralidade da Roménia, com as suas especificidades, tem elementos muito semelhantes. Ou a ruralidade da Índia. Ou do Brasil. Ou dos EUA. Há aspectos que têm quer ver com questões que estão para lá dessa roupagem: há uma maior proximidade com a natureza, o céu está mais presente, as estações do ano estão mais presentes, a morte está mais presente. Uma pequena comunidade em Portugal partilha imensas características com uma pequena comunidade na China. Há aspectos que têm que ver com a nossa natureza. Esse é o centro da literatura, que trata aquilo que não muda. A literatura diz:isto já era assim e vai continuar a ser assim.

 

 

Vai levar 'Galveias' ao mundo...

Já está a ser traduzido para búlgaro. Vou receber um olhar de grande surpresa. Falar deste livro na Escandinávia convoca, para aquelas pessoas, uma realidade muito exótica. No Brasil faz sentido, conheço pessoas de lá que o leram e o entenderam à luz da sua realidade. É fantástico. Diz muito sobre a relação entre os dois países.

 

É no Brasil que tem a maior parte dos leitores fora de Portugal?

Os países onde os meus livros são mais lidos, fora de Portugal, são o Brasil, a Espanha, a Itália e a França. Depois há fenómenos, um livro que inexplicavelmente funciona bem num certo lugar. A primeira edição do Nenhum Olhar, nos EUA, vendeu logo 40 mil exemplares. Claro que nos EUA os números são diferentes. Para nós 40 mil exemplares é imenso, nos EUA não, os bestsellers ultrapassam o milhão de exemplares. Mas para um autor de quem nem conseguem pronunciar o nome…

 

Passa metade do ano a viajar, com os livros e para a Volta ao Mundo. Como é este salto de Galveias para o mundo?

Vejo Galveias com um olhar mais limpo do que se vivesse lá. O olhar é fundamental para um escritor. Tem de estar afinado e limpo. A riqueza da viagem dá-me património para traçar contrastes. Nessa medida acho que escrevo e vivo melhor. Viajar e ver outras realidades ajuda-me a sentir grato pelo que tenho.

 

Mas neste seu romance decidiu não retratar a realidade actual. Por que decidiu situar a acção em 1984?

Uns aspectos já não condizem com o presente, outros mantêm-se. Uma das razões que me levou a escolher 1984 foi justamente a de suscitar essa comparação. Parece-me que o presente perde. O romance fala de um tempo em que Galveias tinha crianças, esperança, perspectivas de futuro. Hoje essa não é a realidade do interior de Portugal, com escolas a fechar e infra-estruturas essenciais a deixarem de existir. Além disso, quis mostrar um interior que não fosse estereótipo de si próprio.

 

Em que sentido?

Em 1984 a realidade local já era tocada por elementos do mundo urbano. Não retrato um lugar em que todas as personagens andam de burro ou de carroça ou em que todas as casas são brancas… A realidade não é essa, é um lugar onde as personagens andam de motorizada, vêem telenovelas, há casas forradas de azulejos. O interior não pode ser um parque temático onde temos a expectativa de encontrar imagens rústicas e idílicas ou que, então, não nos interessa. E 1984 foi um momento próximo de uma viragem na vida do interior, com a entrada de  Portugal na CEE e tudo o que daí adveio. Além disso, em 1984 eu tinha dez anos, ao escrever pude recorrer à minha memória para caracterizar personagens, espaços e situações.

 

Não perguntou coisas à sua mãe?

A minha mãe é a minha grande fonte na escrita de um romance como este, tem uma memória melhor do que a minha e, apesar de o presente do romance se situar em 1984, há várias histórias que vêm dos anos 60 e outros períodos que não vivi. Mas trata-se de um romance muito ligado à minha experiência. Há elementos que ainda hoje são assim, como a ligação à terra das personagens e alguns constrangimentos sociais que nas pequenas povoações ainda existem. E há os aspectos ligados à vida de uma pequena comunidade, como as pessoas se conhecerem todas umas às outras, o que origina uma maior valorização do indivíduo mas também uma certa fiscalização da vida uns dos outros. O livro tenta retratar um pequeno mundo que pode ser transposto até para a vida nas cidades em Portugal. As cidades portuguesas também são compostas por comunidades onde estas formas de relação são replicadas, na medida em que se tratam pessoas que, elas próprias ou na geração anterior, chegaram deste meio e trouxeram esta forma de se relacionar. Por isso sinto que estas Galveias são, em certa medida, um pequeno Portugal.

 

O livro fala sobre muitas personagens e as suas histórias. São reais ou imaginadas?

A história de um lugar é a história das pessoas que o compõem. O lugar está presente porque estão lá as pessoas, que são quem o formou, quem o constitui e de quem a vida nesse espaço depende. As histórias têm múltiplas fontes. Algumas podem ter essa raiz autobiográfica. Mas o que cose todas estas personagens é ficcional, faz parte de uma intenção efabulatória de construir um objecto narrativo.

 

O que lhe disseram as pessoas, estavam com medo de se verem retratadas?

Não, não é a primeira vez que menciono Galveias, fica sempre claro que são textos ficcionais. Sinto que, tendo em conta a situação em que está Galveias neste momento, existir alguém que se lembre de apontar o foco para ali e mostrar aquela realidade é visto com bons olhos. Porque a sensação de quem está lá é a de que existe um esquecimento e um abandono daquela parte do país. Isto é o que eu posso dar a Galveias. O próprio facto de estarmos aqui a falar sobre essa realidade é importante. É uma forma de convidar as pessoas a conhecerem o espaço. Esta é uma questão nacional. Estamos a deixar o país evoluir de uma forma desequilibrada e mais cedo ou mais tarde vamos pagar essa opção.

 

Não há futuro em Galveias?

Eu quero acreditar que existe. Mas se as coisas continuarem como estão Galveias vai extinguir-se. No ano passado morreram 40 pessoas e nasceram duas. E passam-se muitos anos em que não nasce ninguém. Mas há sempre muita gente a morrer porque é uma população envelhecida. Desde 1984, a população de Galveias passou para metade, de 2 mil para mil pessoas. Se não se fizer nada vai continuar a diminuir. Há outros lugares do país à beira de ficar sem ninguém e outros que já não têm ninguém. O caminho que está a ser seguido não traz futuro. Nem tem futuro. Mas quero acreditar que se pode reverter isso. Galveias é um lugar com séculos de história. É mais velho que Nova Iorque. Espero que possa retomar o seu caminho. Porque também é um lugar com orgulho de si próprio, com cultura, com identidade. Este livro é, ele próprio, uma afirmação de identidade. Diz às pessoas: eu sou daqui, eu sou isto. E recusa o complexo em relação ao nosso passado e à nossa identidade rural, isolada da Europa e menos cosmopolita. Essa identidade é uma parte fundamental do que somos. E é uma riqueza. Estou optimista. Há uma geração que já não é tão tocada por esses complexos que recupera essa tradição, actualizando-a e dando-lhe novas roupagens.

 

Que relação têm os seus filhos com Galveias?

Passo lá algumas temporadas com eles. E tento-lhes mostrar e explicar como era a minha infância ali, como era a minha vida. A minha vida de hoje é radicalmente diferente. E a vida deles também.

 

Imagina-se a regressar a Galveias?

É difícil. Tenho a certeza de que quero sempre viver em Portugal. Mas com a vida que tenho agora, feita de muitas viagens, não me é fácil viver em Galveias. A relação é eterna. Mas agora não consigo imaginar isso a acontecer. Talvez no futuro.

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Time Out, 29 outubro 2014

29.10.14

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Visão, 16 outubro 2014

21.10.14

(Texto abaixo)

 

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O apocalipse alentejano

 

“Entre todos os lugares possíveis, foi naquele ponto certo. O serão ia adiantado e sem lua, só estrelas geladas a romperem o opaco do céu, espetadas a partir de dentro. Galveias descaía lentamente para o sono, os pensamentos evaporavam-se.” Assim começa o novo livro de José Luís Peixoto, Galveias, romance elegíaco, alegórico, empático, delirante e neorrealista à vez. Grande fresco de personagens rurais, gente formada por tragicomédias e solidões de todo o tamanho, espécie de auto da barca do inferno em que todas as falhas e vaidades ficarão a nu, o romance é também uma homenagem às raízes familiares do escritor, há 40 anos nascido nesta vila alentejana do concelho de Ponte de Sor, em Portalegre. Um ínfimo ponto no vasto croché geoestratégico em que, atualmente, medimos as nossas vizinhanças, mas que, aqui, ganha ressonância universalista, caixa de Pandora de onde escapam pecados mais ou menos capitais. O autor amplifica acidentes e improbabilidades até elevá-los ao estatuto de parábolas ambiciosas – à maneira de Saramago. E os leitores enfrentarão esta sensação: “As certezas eram muito miúdas, tinham de ser catadas com a pontinha dos dedos.”

 

Retome-se a geografia: “Rodeada por campos negros, pelo mundo, Galveias agarrava-se à terra.” Mas, vinda do espaço, uma “coisa sem nome” vai sacudir a arrumação cósmica, a ordem terrena, a pacatez das Galveias: atmosfera rompida, cratera aberta nos campos, um cheiro “que tresandava a enxofre e a borregum”, uma esfera “imóvel, vaidosa, a exibir-se”, difundindo um calor ardente. A população fica “banzada”, e poucos dias passados – quase tantos quantos os que levou Deus a criar o mundo – o caos instala-se, libertando bíblicas luxúria, ira, fratricídio, gula, escatologia... Um a um, vão-se revelando os personagens desta Galveias ficcional: Catarino, dono da mota Famélia, às avessas com a memória paterna; Armindo Cabeça, figura temida numa família com muitas bocas para alimentar; o velho Justino que tem contas velhas de cinquenta anos a acertar; a professora Maria Teresa, cujos esforços pedagógicos são mal vistos pelos vizinhos; o padre Daniel, que afoga crises de fé no álcool; Rosa Cabeça que se vingará contra Joana Barrete... Um paroxismo à espera de redenção.

 

Mas aqui está também um retrato de um Alentejo à espera do futuro – uma outra redenção. Galveias começa num janeiro de 1984, quase uma década passada sobre o 25 de abril, tinha Peixoto também dez anos: por vezes, é o seu olhar de miúdo que sentimos. Descrevendo mistérios rudes e ancestrais como o de esfolar uma lebre, por exemplo. Ou no mapeamento das paisagens galveenses como um labirinto intemporal e familiar: umas quantas ruas, o jardim e o campo da bola, o Monte da Torre e a barragem da Fonte da Moura, o Vale das Mós e a herdade da Cabeça do Coelho. Mas, em 1984, há sinais de um futuro urbano, digamos assim: Madalena não descola os olhos da telenovela, a brasileira Isabella trabalha na boîte onde os homens amansam instintos; há os pais emigrados que trazem carros novos todos os anos...

 

Tudo isto, um universo e as suas poeiras, um apocalipse à escala regional, uma parábola civilizacional, um puzzle de memórias pessoais e de personagens indissociáveis, José Luís Peixoto condensa num retrato permeado pela sinceridade e, numa linguagem que deixa as idiossincrasias alentejanas “ameigarem-lhe” a mão.

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jornal i, 18 outubro 2014

21.10.14

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Diário de Notícias, 15 outubro 2014

21.10.14

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 (Para aumentar o texto, clicar na imagem. Depois, clicar na opção "outros tamanhos" e escolher "Original".)

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A Bola, 15 outubro 2014

21.10.14

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Correio da Manhã, 12 de outubro de 2014

21.10.14

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O Globo, 26 de agosto de 2014

28.08.14

 

 

 

TEXTO COMPLETO: 

 

José Luís Peixoto: ‘Na Coreia, os rádios só têm o botão de ligar e desligar’

 

“Tenho 40 anos, dois filhos e nasci em Galveias, Ponte de Sor. Um dia, quando estava em Korean Town, em Los Angeles, pensei em escrever sobre algo diferente da minha realidade e que não fosse literário. O próprio lugar me deu a resposta, e decidi ir para a Coreia do Norte, que era o mais diferente que eu conseguia imaginar”

 

Conte algo que não sei.

Na inauguração do primeiro e único campo de golfe norte-coreano, segundo a agência nacional de informação, o líder Kim Jong-Il acertou todos os buracos com uma só tacada em cada um deles sem nunca ter jogado golfe antes. No fim, disse que não voltaria a jogar porque era muito fácil. O feito se tornou indiscutível e foi testemunhado apenas por seguranças e generais.

 

A Coreia do Norte é um anacronismo no século XXI?

Já existiram muitas ditaduras na História, mas, com esse nível de sofisticação de controle dos cidadãos, não creio que já tenha existido. E ele é feito por meio da restrição da informação. Nós vivemos em uma sociedade de informação, o que faz a Coreia do Norte parecer um país fora do mundo.

 

Em sua experiência no país, foi possível separar o que é mentira e o que é verdade?

Ali, toda informação é propaganda do regime. Tentar entender a Coreia do Norte e os norte-coreanos é um exercício muito difícil. É muito complicado se colocar no lugar de uma pessoa que nasceu naquela cultura, com os pais defendendo um regime de ídolos e líderes sobre-humanos. Mas, apesar de viverem com regras severas e marciais — o país é o quarto no mundo em número de efetivos militares —, há momentos em que as pessoas se soltam.

 

Que momentos são esses?

A manifestação da individualidade é uma das coisas mais oprimidas no país. E ela é muito rara. Eles ganham a liberdade pelo soju, uma bebida tradicional que os deixa mais relaxados.

 

Qual foi a sua impressão da força militar do país?

A primeira das duas visitas que fiz, em 2012, coincidiu com os 100 anos do nascimento de Kim Il-sung, o principal líder histórico do país. É a partir do nascimento dele que é contado o calendário usado na Coreia do Norte. Assisti a um desfile militar em Pyongyang, e, até para quem não é especialista bélico, pareceu evidente que se tratava de material muito ultrapassado. Depois da passagem do aparato, o ar ficava irrespirável por causa da fumaça dos veículos muito antigos, queimando óleo.

 

Pelo seu relato, isso se aproxima muito do país fictício de Orwell em “1984”, não?

Sim. Não há um momento em que as pessoas minimamente mostrem algum descontentamento. É uma sociedade que vive sob acusação mútua. Todos observam tudo e todos. Esse discurso bélico está em toda parte. É uma ferramenta de propaganda para deixar o povo em suspensão, como que preparado permanentemente para uma guerra, com a impressão de estar sob ameaça constante dos seus principais inimigos.

 

O que você conseguiu conversar com a população?

São poucas as pessoas que falam outra língua além do coreano. As conversas com os guias geralmente têm um filtro do discurso oficial, e, às vezes, eles falam de uma realidade que claramente não existe, como, por exemplo, números extravagantes de produção em fábricas completamente obsoletas. Com os guias é quase impossível ter conversa sobre temas polêmicos. A Coreia do Norte é um país que só tem uma TV e um canal de rádio. Os aparelhos de rádio são vendidos só com o botão de ligar e desligar. Os norte-coreanos recebem lições inventadas de como é o mundo exterior, que os fazem acreditar que são o país mais desenvolvido do mundo.


No site de O GLOBO.

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Los Angeles Weekly, May 2014

15.05.14

The strange, spare contents of a North Korean bookstore

By Hector Tobar

 

 

 

The Portuguese writer Jose Luis Peixoto saw many strange things on his visit to Pyongyang, North Korea. A grocery store with a box of onions, kimchi and not much else on offer (“No pictures, please!”). And the first hamburger joint in Pyongyang, where there were just 12 people in line (all from his tour group), and he waited an hour for his food.

 

Peixoto is the author of the novels “Blank Gaze” and “The Implacable Order of Things,” the titles of which coincidentally offer apt descriptions of his 2012 visit to the Hermit Kingdom. This month the journal Ninth Letter is publishing serialized excerpts of his North Korea travelogue on its website. In “Inside the Secret,” Peixoto recounts what he saw during a 15-day packaged “Kim Il Sung's 100th Birthday Ultimate Mega Tour.”

 

The most recent installment relates Peixoto's visit to the Foreign Language Bookshop in Pyongyang, the North Korean capital. There were, apparently, no books by foreign writers. Peixoto says that “most of the books for sale were the complete works of Kim Il Sung and Kim Jong Il translated into various languages, or books about them.” The literary fiction section had scant offerings. Many of them had been written by the Late Great Leader, or by unnamed Communist Party literary apparatchiks.

 

“I bought a copy of everything they had,” Peixoto writes. His purchases included “an anthology of folk tales called ‘The Legends of Pyongyang’ translated into French; a long epic poem in English called ‘Mount Paektu’; a novel entitled ‘Sea of Blood,’ adapted from the famous revolutionary opera.” Said opera is credited to Kim Il Sung, while the adaptation was written by the ChoSeon Novelist Association of the 4.15 Culture Creation Group.

 

Peixoto also found “a novella set in wartime called ‘The People of the Fighting Village,’ written by the director of the prose sub-committee of the Central Committee of the Korean Writers' Union; and ‘A Usual Morning,’ a collection of short stories by various authors, the first of which (the title piece of the collection) narrates how the Great Leader, personally, resolves the problems of an agricultural cooperative and rewards the efforts of a young comrade.”

 

And finally, Peixoto’s purchases included another book, which “despite not being in the literary fiction section, seemed to me could be read in the same light. It was called ‘The Democratic People's Republic of Korea: an Earthly Paradise for the People.’ ”

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As Alziras

20.04.14

No momento em que escrevo estas palavras, a minha irmã mais velha está internada num hospital na Eslováquia. A minha irmã chama-se Alzira Maria.

 

A primeira Alzira foi a minha madrinha: madrinha da minha mãe, das minhas irmãs, de mim, madrinha de toda a gente. Sempre velha, de muletas, afastava-se pouco da porta de casa. As muletas oblíquas ao chão de paralelos; ao andar, ela inclinava-se sobre as muletas e, depois do entardecer, a sua imagem era uma sombra confusa, pernas e braços. Hoje, quando encontro uma das suas poucas fotografias e lhe fixo o olhar, concluo que sei pouco sobre ela. Recordar faz com que desbotem as cores daquilo que se recorda, recordo a sua voz. A minha madrinha passou a lua de mel a banhos, Estoril, Cascais, tirou um retrato na Boca do Inferno. Ah, as ilusões de uma jovem noiva nos anos trinta. Há chávenas que a minha madrinha guardou desde esse tempo. Passaram décadas expostas na vitrina de um armário da sala de jantar, varrida, arrumada, onde ninguém podia ir porque era no primeiro andar e tinham medo que o chão/tecto caísse. A minha madrinha criou a minha mãe. Morreu no dia 16 de Outubro de 1993.

 

A segunda Alzira é a minha mãe. A minha mãe é uma espécie de sol, ou de morte, é o horizonte, esse é o tamanho da sua realidade. Eu não sou capaz de descrever a minha mãe em poucas linhas. Outro poderia fazê-lo, mas duvido que o fizesse bem. Quando eu era pequeno, houve uma vez em que me perdi dela. De repente, deixei de vê-la e estava numa cidade que não conhecia. Lembro-me de mulheres a baixarem-se para falar comigo, tinha quatro ou cinco anos, e lembro-me de acreditar que poderia não voltar a vê-la; lembro-me de ter essa idade, estar perdido e sentir essa angústia negra. A minha mãe é o contrário disso. A minha mãe existe em tudo, é infinita.

 

A terceira Alzira é a minha irmã mais velha que, no momento em que escrevo estas palavras, está internada num hospital na Eslováquia.

 

Alzira é um nome tão bonito. É de origem árabe. Pelo menos, parece. É um nome cheio de vogais, bom para ser cantado pelo Nat King Cole. Sou da opinião de que, em Portugal, há um deficit incompreensível de Alziras. Poucos pretextos são tão bons para usar um “z”.

 

Todos os anos, na segunda-feira de Páscoa, fazíamos um piquenique na courela dos meus padrinhos, as Alziras juntavam-se. É claro que, na altura, não as víamos assim, as Alziras; na altura, eram a minha madrinha, a minha mãe e a minha irmã. A minha mãe tinha mantas dobradas e coisas simples que precisavam de ser carregadas na carrinha do meu pai. O caminho até à courela não era longo mas era uma viagem. Chegávamos, ficávamos sempre debaixo da mesma árvore, e o meu pai voltava atrás para ir buscar os meus padrinhos. Talheres, caixas de plástico com comida. Não sei que tipo de conversas tinham a minha mãe e a minha madrinha. Talvez a minha irmã tentasse sintonizar alguma estação no rádio do carro. Talvez eu me aproximasse das colmeias, lá em cima, com um pau/espada nas mãos. Tanto faz. Nessas segundas-feiras, as Alziras brilhavam. Sem o saberem, cada uma delas tinha o nome de um anjo.

 

Pois é, a minha irmã está internada num hospital na Eslováquia. Foi acompanhar a filha, minha sobrinha, a um encontro internacional de dança, sentiu dores na barriga, ambulância, urgências, foi operada no dia seguinte a uma hérnia umbilical. Está a recuperar. Correu tudo bem. Recebeu sangue por causa de uma anemia. Agora, a preocupação é a viagem de volta. Tento imaginar aquela rapariga dos piqueniques da segunda-feira de Páscoa num hospital na Eslováquia, ecos de conversas em eslovaco, talvez a chegada de alguém com um comprimido ou um tabuleiro. E a dor, como um cenário atrás do cenário. Talvez nesse quarto exista um relógio, o ponteiro dos segundos. A minha irmã Alzira Maria. Há muitas coisas que vou perguntar-lhe quando regressar, quero que me conte pormenores: o silêncio, a maneira como as enfermeiras eslovacas pronunciam Alzira.

 

José Luís Peixoto, in Abraço

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