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Recortes sobre José Luís Peixoto e a sua obra.
DEZ NOTAS
Enquadra-se o último romance de José Luís Peixoto (JLP), Em Teu Ventre, em dez notas literárias, que se intentam constituir como âncoras de leitura:
Belíssimo romance, um dos melhores de José Luís Peixoto. Acabámo-lo de ler e não queríamos que tivesse acabado. É o melhor elogio que se pode fazer a um livro e a um autor.
A obra de José Luís Peixoto é, como todos os trabalhos que essa pequena palavra designa, uma construção em transformação permanente. De livro para livro vai-se diversificando e criando pontos de ligação que dão forma ao conjunto.
Prova disso é o lançamento quase simultâneo do livro “Em Teu Ventre” e do de viagens e receitas culinárias, “A Viagem do Salmão”, feito em parceria com o chefe Henrique Sá Pessoa. Mas dos dois é o primeiro que tem dado que falar. Depois de “Dentro do Segredo – Uma Viagem na Coreia do Norte” e de “Galveias”, o escritor lança-se num novo território, apresentando uma reflexão sobre um tema que seria difícil antever. “Em Teu Ventre” fala sobre as aparições de Fátima, entre Maio e Outubro de 1917, cruzando a dimensão histórica dos acontecimentos com outras questões que acabam por revelar traços de identidade mais profundos e colectivos. É também uma reflexão sobre Portugal, o país que leva consigo para onde quer que vá, seja para a Coreia do Norte, para o olhar que lança sobre o mundo que observa e regista no seu iPhone, seja para os seus livros ou para o contacto com o outro.
Quando estava a ser fotografado foi abordado por uma leitora. É algo que lhe acontece com frequência?
Acontece com alguma frequência, porque a minha exposição é grande a diversos níveis, e é quase sempre positivo. Para mim também é uma alegria. Acho que é um sinal de que a comunicação foi efectiva e isso parece-me que em certa medida é um dos objectivos de quem escreve: que aquelas palavras cheguem a alguém e despertem alguma coisa.
Mas muitos escritores, porque já se expõem através da escrita, evitam por vezes esse tipo de contacto. Não parece ser o seu caso.
Eu já fui tímido, mas fui deixando essa timidez num lugar que preservo dentro de mim, porque as circunstâncias que procurei levaram-me a entender a escrita como algo que tem uma outra dimensão e que não se abstém do contacto directo com as pessoas, que para mim acaba por acontecer aos mais diversos títulos. Mais que na rua, normalmente acontece nas apresentações dos meus livros.
E o que lhe costumam dizer quando o abordam?
Normalmente, quando as pessoas se me dirigem é para falar sobre aspectos daquilo que escrevi e de alguma posição que tomei em relação a alguns assuntos, e eu encaro isso como um sinal de generosidade dessas pessoas, porque partilharem isso comigo carrega uma boa energia e dá-me alento para continuar o meu trabalho.
Pelo que percebi, também procuram conhecer as novidades literárias, o que anda a fazer. Agora tem este livro, “Em Teu Ventre”, lançado recentemente e baseado nas aparições de Fátima. Porque decidiu tratar este tema?
Pelos constrangimentos que o próprio tema oferece. Entendi-o como um desafio e a delicadeza do tema requereu uma atenção redobrada e estratégias para conseguir construir o livro que queria fazer, sem sucumbir a questões que a meu ver desvirtuavam a minha proposta. Ao mesmo tempo é a atracção por uma história fascinante, que tem uma repercussão imensa não só no século xx português, mas dentro de uma certa vivência católica no quotidiano de milhares de pessoas. Pareceu-me que é uma história em relação à qual existe uma versão, que é a mais disseminada apesar de bastante imperfeita, e que muitas vezes ignora uma série de circunstâncias e dados reveladores, porque para lá do seu aspecto de crença e fé também tem uma dimensão histórica que é muitíssimo importante e que hoje em dia, na maior parte dos aspectos, é inequívoca. Foi esse lado que me seduziu. Ao mesmo tempo também senti que toda esta história me dava condições interessantes para tratar uma questão que está entre as grandes questões da natureza humana e que é a maternidade. E aí as questões da nossa origem, da nossa identidade mais profunda.
No livro, paralelamente à narrativa, vai aparecendo de resto uma voz materna...
Sim, e aparece também um outro narrador
que acaba por cruzar esses dois planos,
o da religiosidade e o da maternidade,
e que tem essa forma em versículos
e também está dividida em capítulos, como
na Bíblia, e que de certa forma ali se apresentaria como um narrador…
Deus?
É assinalado como sendo Deus, o que por um lado é curioso porque também revela outra figura que está ali indirectamente e que é a do próprio criador do texto. Existe também uma mãe, que de certa maneira se apresenta como a mãe do autor, porque fala para quem está a escrever e comenta aquilo que está a ser escrito, muitas vezes com alguma dureza e sentido crítico, e que pretende representar a mãe que sempre permanece em nós e fiscaliza os nossos gestos, as nossas ideias.
E que muitas vezes é incompreendida, como o livro também mostra.
Sim, mas a partir de certa altura acaba por se desdobrar num paradoxo porque é sempre uma voz criada pelo próprio autor. Nunca é efectivamente a voz da mãe, e isso tenta exprimir um pouco a questão que é a relação com os progenitores, seja ela qual for, mas também o quanto essas figuras têm uma dimensão que é supra-humana e transcendente. Quando nascemos as nossas mães já estavam cá, habituámo-nos a que elas nos garantissem uma quantidade de coisas no momento em que éramos indefesos e não tínhamos possibilidade de as garantir. Só mais tarde começamos a perceber que as nossas mães são humanas e têm outra dimensão para lá daquilo que é mais evidente para nós, porque há muitos aspectos dessas vidas que normalmente escapam aos filhos mas existem e é importante ter em consideração se as quisermos amar como elas são, como mulheres e como pessoas.
“Em Teu Ventre” também não procura julgamentos sobre os acontecimentos e realça-os sob o olhar das crianças, com ênfase em Lúcia.
Isso tem a ver com essa escolha de tratar o assunto pelo seu lado histórico. Obviamente, há sempre um aspecto interpretativo daquilo que são factos, mas depois também existem os próprios factos. Por muito que olhemos para as crianças e possamos ver-lhes características já adultas, a verdade é que eram crianças e de uma idade bastante tenra. Ao mesmo tempo, também me parece que interessante trazer alguma clareza sobre aquilo em que não há dúvidas, porque quanto à fé não me parece que haja argumentos que sejam absolutamente inquestionáveis e permitam dizer que as aparições foram ou não efectivas. Isso terá sempre de ser uma escolha que parta da sensibilidade de cada um, da forma como vê o mundo e das questões do transcendente e do divino. Estamos a referir-nos a acontecimentos que tiveram lugar numa época que não testemunhámos, o que temos são relatos e relatos que, contrariando a natureza, põem as coisas nesse ponto. A minha forma de lidar com isso no livro foi não descrever esses momentos, porque ao descrevê-los iria sempre tomar partido. E neste caso vou tendo as minhas próprias convicções e sensibilidades mas não me parece interessante estar a impô-las aos outros. Ao fazê-lo iria mutilar o livro da sua intenção principal, que é fomentar a reflexão sobre um assunto que está presente com muita frequência mas é pouco aprofundado e ao longo do tempo foi ganhando diversas conotações.
Este era um tema de que se falasse em sua casa, em família?
Não é um assunto particularmente próximo por essa via, embora a minha educação tenha sido toda católica. Andei na catequese, fiz a primeira comunhão, tive sempre contacto com esse mundo. Mas sinto que, em relação a esta história em particular, a forma como ela me foi contada quando era criança ainda é aquela que se utiliza para a contar à maioria dos adultos hoje em dia. Uma versão infantil e infantilizada, algo grosseira, que distorce elementos importantes da história real. Enquanto adultos que nos interessamos por conhecer a realidade que nos rodeia, é importante que exista uma tentativa de a contar de uma forma mais realista. Obviamente, isto é um livro de ficção, não é um manual histórico sobre esses acontecimentos, mas sinto que existe também uma certa procura de realismo. Fiquei muito contente por perceber que os católicos e as instâncias católicas mais ciosas desta história, de um modo geral, têm aceitado que se trata de uma reflexão.
Como tem sido o feedback da Igreja a este livro?
Não tive uma reacção exacta por parte de nenhuma hierarquia, mas tive alguns sinais que me deixaram muito contente. A primeira apresentação do livro foi feita em Fátima e na presença de figuras bastante ligadas ao culto mariano e até com algumas responsabilidades. Ao mesmo tempo, a primeira entrevista sobre este livro foi para a Rádio Renascença, a emissora católica portuguesa. E isso deixa-me muito contente. Em nenhum momento quis que este livro fosse uma provocação ou agressão à fé em relação a Fátima ou à Igreja. Houve até alguns aspectos que mostram isso, um deles tem a ver com as fontes que escolhi para seguir e construir esta narrativa.
(texto abaixo)
Em busca de um lugar para a dor e de sentido
José Luís Peixoto lança "Morreste-me", breve ficção sobre a morte de seu pai
Em 1996, o português José Luís Peixoto tinha 21 anos e estudava para ser professor de inglês e de alemão. Não sonhava que ganharia o Prêmio José Saramago, para jovens autores, e que em poucos anos construiria uma carreira literária internacional respeitada. Mas a morte de seu pai naquele ano, depois de um sofrido tratamento de saúde, e a experiência de voltar, de fato ou em pensamento, à casa da infância, vazia, mudaria seu destino. Nascia, ali, um escritor – não que ele tivesse consciência disso quando começou a escrever o que se tornaria, depois, Morreste-me, que só agora ganha edição no Brasil.
Foi então com esta narrativa em que o filho conversa com o pai “impossivelmente morto”, enquanto relembra os últimos momentos vividos em casa ou no hospital e fala sobre o presente, ou seja, o regresso “a esta terra cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse”, que Peixoto estreou na literatura.
José João morreu em janeiro. José Luís começou a escrever sobre sua perda em maio. Achava que se tratava apenas um texto, mas ao terminar sentiu que tinha mais a dizer – e continuou. “Cada frase foi escrita com muita dificuldade. Lembro-me de passar muito tempo diante da folha e, no fim do dia, ter duas, três frases, não mais”, conta. Encerrado o processo que durou um ano, ainda não considerava que estava diante de um livro. “Foi só mais tarde, quando percebi que nunca poderia escrever algo que se lhe comparasse, que me apercebi do quanto se tratava de um texto único. Então, decidi publicá-lo.”
O primeiro capítulo saiu no suplemento juvenil do Diário de Notícias, em 1997. Depois, a versão integral seria incluída na Colectânea de Textos Jovens Criadores 98. Em 2000, Peixoto bancaria uma edição de autor porque não queria que a obra precisasse da aprovação de nenhum editor – e eles vieram com o tempo. Nesses 15 anos, foram 20 edições em Portugal, o que representa cerca de 80 mil exemplars vendidos. Morreste-me foi lançado também em françês, espanhol, catalão, inglês, italiano e croata. “Este livro tem se mantido sempre por demanda dos leitores. Não sou capaz de fazer uma avaliação fiel dos resultados, mas creio que tem muito a ver com a identificação que as pessoas que já perderam alguém encontram nessas páginas. Além disso, hoje em dia, não é fácil encontrar livros que não tenham medo de falar sobre a morte”, comenta.
Peixoto não teve medo de mergulhar nesse luto, de se apresentar menino diante de sua dor e de se mostrar homem diante da situação do pai: “Pai que nunca te vi tão vulnerável, olhar de menino assustado perdido a pedir ajuda. Pai, meu pequeno filho”. O autor tampouco tem medo de encarar esta sua primeira obra. Em 2012, ele fez uma leitura integral de Morreste-me e emocionou o public que lotou a Casa de Cultura de Paraty, numa programação paralela à Flip. E, desde a semana passada, viaja pelo País para divulgar o lançamento. Hoje, ele participa de dabate com a escritora Paula Fábrio, cujo próximo romace, Ponto de Fuga (título provisorio), tem temática similar.
Voltar ao livro, diz o autor, continua o emocionando. “Por mais tempo que passe, nunca me consigo alhear daquilo que aquelas palavras transportam. Ainda assim, essa relação está em constante mudança. Hoje, muitas vezes, quando digo “pai” sou eu o pai ou, às vezes, esse pai são os meus filhos. O amor, no entanto, é o mesmo. “ Um ano depois de perder o pai, nasceu João, o primogenitor de Peixoto. André, o caçula, tem 10 anos.
Para o autor, escrever, pensar e falar sobre a morte é, em primeiro lugar, uma forma de contribuir para uma reflexão sobre a vida e prestar atenção em temas fundamentais como o tempo e o amor, entre outros. “Vida e amor”, ele responde, é o que o interessa na literatura. “Para mim, a literature é cartografia invisível. Por meio dela, tentamos encontrar sentido, referências para não nos perdermos do essencial. Ela dá proporção, equilibra a memória, limpa o pensamento”, completa.
Depois de Morreste-me, Peixoto lançou Nenhum Olhar, venceu o Prêmio José Saramago e resolveu assumir que era escritor. Lançou, ainda, entre outros, Uma Casa na Escuridão, Cemitério de Pianos e Livro. “Existe um antes e um depois muito claros marcados pela escrita desta obra. Essa mudança acompanha a grande alteração que aconteceu na minha vida com a morte do meu pai. Ainda fico impressionado ao lê-lo e ao constatar como ele condensa muitos dos temas essenciais daquilo que tenho desenvolvido no que escrevo. Sinto muita alegria por ter escrito este livro nessa idade. Foi uma ajuda enorme e permitiu que me organizasse e clarificasse aquilo que me importa”, diz.
Nascido em 1974, em Galveias, Peixoto é um dos principais autores portugueses de sua geração. “ Tenho muita pena que o meu pai nunca tenha imaginado que, um dia, eu me tornaria escritor. Sempre que alcanço alguma realização com meus livros, sinto sempre essa falta”, confessa. E, a certa altura do livro, o narrador diz: “Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou”.
(texto abaixo)
Convidado do Festival de Literatura de Poços de Caldas, que se encerra hoje, o autor português José Luis Peixoto , 40, comenta sobre a sua relação com a escrita e frisa o seu interesse em lidar com temas como a identidade e as relações familiares. Em Belo Horizonte nesta terça (5), ele aqui participa do evento Sempre Um Papo, no Museu das Minas e do Metal, às 19h30.
A infância é um tema destacado na Flipoços deste ano. Como você percebe a relação desse unvierso com o seu mais recente livro, “Galveias”?
Esse romance tem muita a ver com a memória da infância. Como já mostra o título, Galveias é o nome da cidade onde eu nasci, na região do Alentejo, no interior de Portugal. Ela tem cerca de um mil habitantes. Lá eu vivi até os 18 anos, quando saí para estudar fora. Para fazer o retrato da vida naquela comunidade, eu recorri muito ao que eu vivi lá. A história está localizada temporalmente em 1984, quando eu tinha 10 anos. Portanto, as minhas lembranças de infância estão ali muito presentes. Agora isso é algo que aparece em muitos livros meus. Desde o primeiro, que se chama “Morreste-me” e que acabou de ser publicado no Brasil. Tenho um outro também de poesia que se chama “A Criança em Ruínas” e que de certa forma fala justamente sobre a forma como a idade nos transforma e como há sempre uma criança dentro de nós, a partir da qual evoluímos, ou seja, ela é quase uma raiz a partir da qual crescemos.
Em “Galveias”, você disse que também homenageia as pessoas daquela cidade e revisita o local, especialmente, a partir da memória. Se compararmos o retrato que faz daquele lugar na ficção com a realidade dela hoje, o que encontramos no texto é a reconstrução de um ambiente que flerta mais com o imaginário?
O interior de Portugal sofreu grandes alterações nos últimos 30 anos e, por isso, a realidade tratada no livro, localizada em 1985, é bastante diferente da contemporânea. Outro aspecto interessante é a diferença e a transformação que sempre existe quando se trabalha um tema ou uma realidade que depois são abordados num formato literário. Em primeiro lugar, existe esse filtro que tudo muda que é a própria memoria. A memória de certa forma é uma narrativa, uma história que contamos a nos próprios e nessa medida todos somos de algum modo escritores. Todos escrevemos a nossa própria memória e para fazer isso partimos de nossa perspectiva e do que conhecemos, o que é sempre imperfeito e é uma das faces da realidade. Mas, por outro lado, existe também a própria transformação de colocar em palavras o que não é constituído apenas por palavras porque a realidade é multidimensional e surge das mais diversas formas. Construir um objeto de palavras que tente dizer aquilo que aconteceu é necessariamente transformar aquilo que aconteceu, é tentar sugeri-lo, por isso existe sempre uma diferença entre esses dois planos.
A questão da ruralidade, que há em “Galveias”, permeia também outros títulos seus, como “Nenhum Olhar” e “Livro”. O que o interesse nessa abordagem?
Eu acho que naquela ruralidade existe alguns elementos que fazem parte da matriz genética da cultura portuguesa e, em alguns aspectos, sinto que naquela imagem de ruralidade existe a condensação de algo que se consegue encontrar mesmo nos sinais mais urbanos do Portugal contemporâneo porque tem a ver com a identidade, com quem somos. Na primeira vez que vim ao Brasil, eu estive em Minas Gerais e a, partir daí, senti que havia uma certa facilidade na comunicação aqui neste Estado, em particular, justamente talvez por essa questão da ruralidade. Embora exista algumas especificidades, esse aspecto compartilha elementos que são trasnacionais. Tem a ver com a ligação e com a proximidade da natureza, com a vida na qual a natureza marca ciclos e marca até um ritmo que muitas vezes condiciona e molda a forma de pensar e ver o mundo, e isso é fundamental.
Em “Morreste-me”, seu primeiro romance, há o foco para as relações familiares e para aspectos relacionados à sua cidade natal, o que se nota em outros livros. A presença dessas memórias íntimas e do diálogo com a sua biografia é uma marca do seu trabalho ficcional?
Quando escrevi o livro “Morreste-me” nem tinha consciência de que estava a escrever um livro. O tema é muito sensível, escrevi esse livro após a morte do meu pai e o romance trata disso, de um filho que perde um pai. Mas muito facilmente aquela história também pode ser transposta para outras perdas porque no fundo é um livro sobre o luto. E é interessante pensar no livro à luz dessa questão da infância porque sinto que é um livro que fala sobre o fim da infância. O momento em que morre o pai e o filho se torna o próprio pai, assume esse papel, ganha esse estatuto de ter que tomar responsabilidade e ser adulto. Quando escrevi esse livro não tinha um projeto de escrita para o futuro, eu era jovem, estava entre os meus 21 e 22 anos. Eu escrevi sobre aquilo que naquele momento me era evidente. O assunto que naquele momento eu não podia fugir. A partir daí, o caminho que eu fiz na escrita acabou por, de alguma forma, sempre se ligar a esses temas. Por uma razão que eu não sei completamente explicar. Embora tenha também tentado de alguma forma me afastar desses temas, como através do meu último livro publicado no Brasil, “Dentro do Segredo”, e que fala de uma viagem à Coreia do Norte. A verdade é que mesmo a escrever sobre a Coreia do Norte, eu percebi que no fundo estava sempre a escrever sobre mim. Ou seja, estava quase a fazer um retrato desses mesmos temas quase que em negativo. Isso tem a ver com aquilo que se tem que dizer, porque é muito importante na hora de se escrever um livro colocar uma pergunta que é essencial, o que é que eu tenho pra dizer. E pra mim aquilo me trouxe sempre garantias que não estava a ser redundante, a repetir de uma forma o que outros já tinham dito antes de mim. A história da literatura é enorme, o patrimônio literário mundial é gigantesco, então, eu sempre quis escrever sobre aquilo que parecia que só eu sabia, e aquilo que só eu sabia é algo muito próximo de mim.
Antes de publicar livros, você tinha uma banda. Em que momento isso muda, e você deixa a música para se tornar escritor?
Eu nunca me considerei um músico. Eu tive uma banda na minha adolescência e há, aliás, uma banda de Belo Horizonte, Sepultura, que para mim é fundamental. Eu a vi em 1991 e foi incrível. Esse sempre foi o meu som. Aqui no Brasil não é muito comum encontrar escritores que preferem esse tipo de banda, como Ratos de Porão, e outras coisas assim. Mas efetivamente na minha adolescência esse tipo de música foi importante como uma afirmação da adolescência e, ao mesmo tempo, foi importante para mim porque vivendo numa pequena cidade do interior de Portugal, em que a realidade toda é rural, ter essa ponte para o mundo fez com que eu também ganhasse uma perspectiva e uma distância sobre essas duas realidades. Ou seja, o fato de eu olhar um pouco de fora toda essa ruralidade fez com que eu conseguisse ver esse lugar de uma forma diferente. Para mim caminhar com a guitarra elétrica por rebanhos de cabras é uma imagem que considero muito especial e tem muito a ver com aquilo que eu vivi ali.
Essa experiência com a música ficou só na adolescência?
Já mesmo depois de ter publicado meus primeiros livros tive alguns projetos ligados à música, mas não como músico. Mas, por exemplo, em 2003 publiquei um livro que se chama “Antídoto” e foi escrito ao mesmo tempo que uma banda, Moon Spell, que é o Sepultura português. Fizeram um disco que tem o mesmo nome do título, e cada tema dele corresponde a um conto desse livro. Isso foi algo muito fora do comum, pois não havia escritores portugueses a ter colaborações com bandas de heavy metal. Desde então, tenho tido vários colaboradores com bandas escrevendo textos para eles, sempre nesse gênero de colaboração, mas sempre como escritor, nunca como músico. Hoje em dia, em Portugal, também escrevo para outros tipo de músicos fadistas, por exemplo. Essa é uma área musical que sempre rejeitei, o fado na minha adolescência, sempre foi uma música que meus pais ouviam, e eu não gostava. Depois, na idade adulta, surgiram esses projetos, então eu fui descobrir o fado e fiquei surpreendido com o quanto a minha ignorância adolescente estava a me privar de um gênero musical incrível e que tem uma riqueza poética tão fascinante. Então, escrevo para muitos músicos portugueses, do fado, ao pop, ao metal.
“Dentro do Segredo” você concebeu a partir de uma viagem à Coreia do Norte, mas o livro não se constitui como um relato jornalístico. Como você percebe as relações que ele revela entre ficção e realidade?
A Coreia do Norte é um país muito fora do habitual, tem um sistema político único e com características que para nós são muito difíceis de aceitar. Ao mesmo tempo, é um país que tem uma realidade cultural e civilizacional bastante diferente da nossa, o que faz com que para um visitante ocidental seja quase como um mistério por desvendar e interpretar. Ao mesmo tempo, contribui muito para esse mistério o fato de o governo dificultar muito o acesso à informação. Mesmo quando se visita o país, há sempre muita dificuldade de obter respostas, e aquilo que se vê, em muitos casos, são apenas insinuações feitas para nós. Então, por isso aquele livro, que retrata a viagem que eu fiz durante semanas na Coreia do Norte, acaba por muitas vezes se deparando com essa dificuldade de aquilo que eu estava a ver não ser muito credível como realidade. Mas havia sim a sensação de se estar verdadeiramente dentro de uma ficção construída pelo aparelho de propaganda do estado norte-coreano. Nessa medida esse livro tem uma relação com a ficção, mas eu fiz uma questão que seja também factual e documental. Ou seja, quando faço uma afirmação lá, eu estou convicto de que ela é verdadeira.
Você também escreve poesia. Há características comuns identificadas entre essa seara e a sua prosa?
A minha poesia tem uma ligação muito grande com a minha prosa, em alguns casos isso é muito evidente. Esses temas que falamos aqui, como a família, a identidade geográfica, também estão presentes na minha poesia. Eu sinto, no entanto, que há alguns aspectos que diferenciam os dois segmentos. No meu caso particular, tenho uma perspectiva da poesia em que ela aspira uma certa ideia de pureza e de simplicidade. Curiosamente, muitas vezes, meus versos são mais simples do que as frases dos meus romances. Há dois livros que foram publicados em 2003, de uma só vez. Um romance que já foi publicado aqui e se chama “Uma Casa na Escuridão” e um livro de poesia que se chama “Uma Casa, Escuridão”. Esses dois livros têm títulos próximos, tratam de temas afins e seguem a mesma estrutura, mas um é independente do outro.
Como você vê o cenário literário contemporâneo do seu país?
Portugal está atravessando um momento de muita vitalidade no que diz respeito a literatura de autores emergentes, embora haja uma boa quantidade de nomes que já ultrapassaram essa posição. São nomes confirmados e dos quais se espera um grande futuro e que boa parte deles são conhecidos aqui também no Brasil e são publicados e bem recebidos aqui. Eu vejo esta geração com muito otimismo e fico contente por fazer parte dela. Sinto que essa riqueza tem um pouco a ver com a herança que recebemos de grandes autores das gerações anteriores e, ao mesmo tempo, tem a ver com aspectos históricos que moldaram essa geração. No meu caso específico, eu nasci em 1974. Este é um ano importantíssimo porque marca o fim de uma ditadura de 48 anos em Portugal. Isso é algo muito importante para a geração atual de escritores. É a primeira que nasceu e cresceu numa democracia, sem censura e todos os entraves que existiam durante o período da ditadura. Acho que esse é um aspecto que realmente trouxe força e, de alguma forma, justifica o surgimento desse número de autores que começaram a publicar no início desse século e que realmente tem recebido um grande reconhecimento em Portugal e fora dali. Por exemplo, Valter Hugo Mãe, Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz, Dulce Maria Cardoso entre outros.
Em relação ao Brasil, há alguns autores com quem você tem uma afinidade maior?
O Brasil é uma fonte que me parece inesgotável de autores. Muitas vezes, em razão da dimensão enorme do país, parece que há até uma certa injustiça no que diz respeito ao reconhecimento mais nacional de alguns deles. Efetivamente, às vezes, encontram-se autores enormes que não conseguem ser lidos fora do seu Estado, e, por isso, cada viagem que faço ao Brasil encontro sempre muitas referências e fontes de inspiração. Mas se vamos falar da literatura brasileira de maneira geral, há autores de dimensão universal que eu realmente não poderia deixar de me referir como é o caso de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano ramos e Machado de Assis para citar apenas quatro.
Por José Castello
Perdi meu pai no ano de 1982. Um longo silêncio se estendeu diante de mim. Trinta e três anos depois, a sombra de meu pai retorna nas páginas de um livro: "Morreste-me", do português José Luís Peixoto (Dublinense). Leio a novela de Peixoto _ seu livro de estréia, lançado em Lisboa em 2000 _ com o coração apertado. Luz e escuridão se mesclam nessa narrativa de indisfarçável origem autobiográfica: ela é dedicada à memória de José João Serrano Peixoto, pai do escritor. Foi preciso que o pai morresse para que o escritor pudesse nascer. Hilda Hilst tinha uma explicação forte para isso: “Toda literatura nasce de uma tragédia familiar”.
A caminho da casa do pai morto, o filho constata: “Parto para o que sobra de ti e tudo são resquícios do que foste” É uma viagem fosca, atravessada pela grande sombra da morte. “Viajo no escuro que deixaste e chego finalmente a ti”. Na verdade, é a si mesmo que o narrador chega _ o que já se expressa no belo título, "Morreste-me". A morte do pai é, também, a morte do filho. Daí a urgência do retorno ao passado, da volta a esses resíduos que, se não restauram uma existência, pelo menos a simulam. É noite. “O negro líquido da noite a mover-se, a acordar em figuras redondas de água”. É a primeira noite que o pai não viveu.
A dor contamina todo o livro, derramando-se pelas frases e impregnando-se nas imagens tensas. O romance abre com três frases vigorosas: “Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse”. As lembranças da agonia paterna se misturam à experiência de retorno, lançando o narrador em uma busca ainda mais atormentada. O pai se submeteu ao tratamento da doença _ um câncer incurável no abdômen _ sustentando a falsa esperança de sobreviver. Desde o início, a dor impôs à realidade a aparência de um teatro. Encenação cruel, ao fim da qual todos os cenários desabaram, restando só uma ausência.
“Comigo, a casa estava vazia. (...) As várias sombras da sombra de mim, imóveis, passeavam-se de corpo para corpo, porque todos eles, todos meus, eram igualmente negros e frios”. O frio também se alastra pelas páginas de Peixoto e nos faz tremer. “Pensei: não poderiam os homens morrer como morrem os dias?” Ao cair da tarde, “pássaros cantam sem sobressaltos e a claridade líquida vítrea em tudo”. A brisa é leve, as folhas dançam, o mundo se move lentamente para a noite. Chega-se, então, ao “silêncio esperado, finalmente justo, finalmente digno”. Por que, na morte dos homens, ao contrário, são tantos os temores? Por que há tanto lamento e tanto alvoroço? Não poderiam os homens morrer como os dias?
Em contraste com a voz muda do pai, reverberam alguns ecos. As coisas, mortas também, se tornam violentas. “Tudo o que te sobreviveu me agride”. As coisas são transpassadas por uma luz fina, “que agora és”. Esse pai transformado em luz persiste como um sol negro. Um sol detido em um intervalo do tempo, luz do que já não há. O que mais nela agride é a imobilidade. É ela, com sua colcha de mentiras, que faz o mundo doer. “Tudo quer e tenta ser igual”. Mas na barriga do mundo há agora um oco, vazio que “quer ser mundo ainda”. Não foi só o filho quem morreu com a morte do pai, a realidade morreu um tanto também.
A linguagem de José Luís Peixoto é dançarina. Só essa linguagem inundada de poesia pode ainda aproximar pai e filho. As horas se embaralham e o filho se vê pequeno, sentado no carro do pai, espremido pelo cinto de segurança, a perguntar quanto tempo falta para chegarem a seu destino. Naquela época, ainda fazia sentido perguntar pelo tempo. Hoje pergunta alguma suporta mais a noção de passagem. Os dois estão retidos em uma zona fixa, na qual só as sombras ainda conseguem se movimentar.
O filho passa a noite, sozinho, na casa vazia. O ar, então, se enche de perguntas. “Onde estiveste esta noite, pai? Procurei-te para lá da memória, nos cantos que só nós conhecemos, e não te vi”. No quarto, a cama está feita, a esperar o pai que não chegará. O rapaz remexe as gavetas, abre as portas do armário. Busca – o que? Em um impulso, veste as roupas do pai morto. Olha-se no espelho. “No reflexo, encontrei-te, vi-te passar a mão rapidamente pelo cabelo e alisar a roupa no corpo e acertar o colarinho da camisa”. O rapaz olha fixamente a própria imagem. Espanta-se: “Vi-me igual a ti, nas tuas feições firmes”. O pai morto renasce no filho vivo, que agora é seu pai também.
Sem o pai, as coisas perderam a vida. Na mesa de cabeceira, o relógio de pulso ainda marca inutilmente os segundos, “mesmo depois de ti”. O tempo já não serve para nada, é só um traste que devemos carregar. Insistente, o filho coloca o relógio no pulso: “Ainda as marcas de suor, ainda tu”. Em tudo, o pai permanece como nódoa, o que não é suficiente para soprar vida às coisas. Aturdido, o rapaz permanece ancorado ao grande sol negro. “Passei a noite sozinho. Contigo. Perto do silêncio absoluto”.
Resta ao narrador o “vazio que ficou dos gestos que não fazes, das palavras que não dizes, do olhar permanente que tinhas e já não poder ter”. É sobre o nada que o mundo agora se sustente. A noite: o lugar mais oco do mundo. O rapaz sente a morte do pai como um segredo que já não pode contar a ninguém. Nem a si mesmo. Percebe que a morte é o impronunciável. Que ela é algo que não se pode dizer. Se você diz, morto já não está. Só o silêncio contorna a morte.
Logo que amanhece, trêmulo como um fugitivo, o filho deixa a casa paterna. “Ninguém se atreveu nas ruas da minha passagem, só a cal e o sol e as casas permaneceram no lugar onde as conhecemos tantos dias”. Parece já não haver mundo, também, para esse filho que, sob a luz do sol, encarna o pai morto. Esquiva-se como um fantasma. Volta ao cemitério. No mármore frio, resta o nome do pai. “Tem o teu nome, pai. O teu nome importante, pai. Escrito para sempre, como as nuvens, como as coisas que não morrem”. Perfilado diante da campa, o filho se deixa invadir, ele também, pela grande estrela negra, astro paradoxal a emitir uma luz que, se ilumina, também mata.