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Recortes sobre José Luís Peixoto e a sua obra.
As sombras e a luz de José Luís Peixoto
Luís Osório
Estive em Galveias, o lugar onde uma rua tem o seu nome e as pessoas lhe tocam como se tocassem em si próprias. Não é uma forma de dizer ou de pintar as palavras, é a mais pura das verdades, eu vi.
Na Rua José Luís Peixoto estava um cão a âfalarâ ao fundo. Um homem foi ao seu encontro e da placa, perguntou-lhe se era mesmo aquele que partira para a grande cidade, para o mundo. Era ele, o do nome no cimento, o escritor com quem almocei a sós, pela primeira e última vez, quando dirigia um jornal e ele tivera um enorme sucesso com o seu Morreste-me, livro em que viajou ao interior de uma memória em ferida, a do seu pai morto quando estava em idade de vida. Creio que acabara de lançar o Nenhum Olhar, romance em que partiu dos lugares da juventude, os dessa Galveias que o moldou e lhe deu tudo o que precisava fê-lo como Saramago que, apesar de ribatejano, escreveu o Levantado do Chão. Saramago por convicção ideológica, Peixoto por urgência de si próprio.
Almoçámos no desaparecido restaurante Paris, conversámos de circunstâncias, fiz-lhe um convite para ser cronista, o trivial. Eis que, dez anos depois, encontrámo-nos na terra onde tantos vivem cismados como se, em permanência, armassem exércitos de sombra e de luz. Contou-me dessas cismas: «Quando alguém aqui se suicida há sempre quem diga não ter ficado surpreendido porque ele ou ela andavam cismados». A cisma não se explica, habita a intimidade do Alentejo, habita também o escritor, pressinto-o nas suas palavras, nas que escolhe para matar e nascer, pressinto-o.
Na encosta de uma colina do alto alentejano, rodeada de duas barragens onde o silêncio é ensurdecedor, Galveias é José Luís Peixoto. Na escola primária, mais de quarenta miúdos esperaram a sua visita, receberam-no com gritos, fizeram-lhe perguntas. A ele e à velha professora que o ensinou a ler e a contar.
Perguntas sem ponto de interrogação no fim, opiniões que esperavam apenas pela sua concordância. âConheceu o meu pai, não conheceu Foi aqui nesta sala que aprendeu como estou a aprender, não foi Nos países que visitou tem saudades daqui, não temâ. Esperava que perguntassem pelos piercings cravados só no lado direito. Pelas tatuagens que vivem à superfície e são marca de água, pensei que perguntassem pelo óbvio, mas não Os miúdos perguntaram sem perguntar, como o fizeram também os velhos e os amigos de infância e juventude. Uma entoação de ponto de interrogação, sem ponto de interrogação se a frase fosse escrita.
Retórica que não é bem amor, talvez mais uma alma colectiva, uma identidade. Não tenho o talento de explicar, é como se no caminho de regresso, tivessem vindo com ele e com uma parte de todas as crianças, amigos de infância e os velhos que visitou no lar. As flores que lhe deram, o desenho oferecido por uma criança que o pintou e o colocou ao seu lado, como se fosse também um bocadinho seu filho e José Luís Peixoto um pai que, de uma maneira ou de outra, estará sempre presente. Afinal ele é a prova de que tudo é possível a professora primária bem lhes repetiu naquela manhã: «O José Luís era tão ou mais irrequieto do que vocês, ninguém lhe dava descanso à perna».
O cão a âfalarâ ao fundo da rua baptizada com o seu nome é importante nesta história. Cismei à minha maneira que o era porque, de todos por quem passámos nas Galveias, talvez fosse mesmo o único para quem o escritor não passava de mais um, igual aos outros.
Não lhe disse destes pensamentos. Viemos à conversa todo o caminho com uma câmara a gravar, talvez um destes dias essas imagens possam ser vistas falou-me de Portugal, da palavra Amor, a única que ficaria se por ventura de todas as outras tivesse de abdicar. Estranha forma de vida que o fez, ainda assim e sem contradição, aproximar-se das vísceras das guitarras em distorção, dos sons pesados e de sombras, do que é gótico e parece mais afastado da luz de que se diz pródigo Di-lo sem dizer quando escreve cartas de afecto aos professores, quando escreveu ao pai o que talvez tenha sempre ficado calado, quando inventou palavras de poema para a mãe que é a casa que conhece, a casa que a maioria de nós conhece. Quando se diz optimista também. A luz e a sombra. Porventura a explicação para metade da sua cara estar âtatuadaâ e a outra estar limpa sombras e luz, morte e vida, pessimismo e optimismo, cisma e esperança.
Falou-me também das viagens, deste último livro (Dentro do Segredo), quase jornalístico, um quase no país dos mistérios e das sombras, uma Coreia do Norte por onde pôde caminhar e ver com os olhos das suas obsessões, inquietações e sonhos. Ou do seu primeiro livro infantil, A Mãe que Chovia, um longo poema de amor à sua própria mãe, que tão orgulhosa ficou quando a rua foi inaugurada com o nome do filho nascido no Setembro do ano da queda do Estado Novo. Rua José Luís Peixoto, onde um quase jovem como ele lhe fez perguntas retóricas e um cão ladrou da sua justiça.