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Recortes sobre José Luís Peixoto e a sua obra.
A obra de José Luís Peixoto é, como todos os trabalhos que essa pequena palavra designa, uma construção em transformação permanente. De livro para livro vai-se diversificando e criando pontos de ligação que dão forma ao conjunto.
Prova disso é o lançamento quase simultâneo do livro “Em Teu Ventre” e do de viagens e receitas culinárias, “A Viagem do Salmão”, feito em parceria com o chefe Henrique Sá Pessoa. Mas dos dois é o primeiro que tem dado que falar. Depois de “Dentro do Segredo – Uma Viagem na Coreia do Norte” e de “Galveias”, o escritor lança-se num novo território, apresentando uma reflexão sobre um tema que seria difícil antever. “Em Teu Ventre” fala sobre as aparições de Fátima, entre Maio e Outubro de 1917, cruzando a dimensão histórica dos acontecimentos com outras questões que acabam por revelar traços de identidade mais profundos e colectivos. É também uma reflexão sobre Portugal, o país que leva consigo para onde quer que vá, seja para a Coreia do Norte, para o olhar que lança sobre o mundo que observa e regista no seu iPhone, seja para os seus livros ou para o contacto com o outro.
Quando estava a ser fotografado foi abordado por uma leitora. É algo que lhe acontece com frequência?
Acontece com alguma frequência, porque a minha exposição é grande a diversos níveis, e é quase sempre positivo. Para mim também é uma alegria. Acho que é um sinal de que a comunicação foi efectiva e isso parece-me que em certa medida é um dos objectivos de quem escreve: que aquelas palavras cheguem a alguém e despertem alguma coisa.
Mas muitos escritores, porque já se expõem através da escrita, evitam por vezes esse tipo de contacto. Não parece ser o seu caso.
Eu já fui tímido, mas fui deixando essa timidez num lugar que preservo dentro de mim, porque as circunstâncias que procurei levaram-me a entender a escrita como algo que tem uma outra dimensão e que não se abstém do contacto directo com as pessoas, que para mim acaba por acontecer aos mais diversos títulos. Mais que na rua, normalmente acontece nas apresentações dos meus livros.
E o que lhe costumam dizer quando o abordam?
Normalmente, quando as pessoas se me dirigem é para falar sobre aspectos daquilo que escrevi e de alguma posição que tomei em relação a alguns assuntos, e eu encaro isso como um sinal de generosidade dessas pessoas, porque partilharem isso comigo carrega uma boa energia e dá-me alento para continuar o meu trabalho.
Pelo que percebi, também procuram conhecer as novidades literárias, o que anda a fazer. Agora tem este livro, “Em Teu Ventre”, lançado recentemente e baseado nas aparições de Fátima. Porque decidiu tratar este tema?
Pelos constrangimentos que o próprio tema oferece. Entendi-o como um desafio e a delicadeza do tema requereu uma atenção redobrada e estratégias para conseguir construir o livro que queria fazer, sem sucumbir a questões que a meu ver desvirtuavam a minha proposta. Ao mesmo tempo é a atracção por uma história fascinante, que tem uma repercussão imensa não só no século xx português, mas dentro de uma certa vivência católica no quotidiano de milhares de pessoas. Pareceu-me que é uma história em relação à qual existe uma versão, que é a mais disseminada apesar de bastante imperfeita, e que muitas vezes ignora uma série de circunstâncias e dados reveladores, porque para lá do seu aspecto de crença e fé também tem uma dimensão histórica que é muitíssimo importante e que hoje em dia, na maior parte dos aspectos, é inequívoca. Foi esse lado que me seduziu. Ao mesmo tempo também senti que toda esta história me dava condições interessantes para tratar uma questão que está entre as grandes questões da natureza humana e que é a maternidade. E aí as questões da nossa origem, da nossa identidade mais profunda.
No livro, paralelamente à narrativa, vai aparecendo de resto uma voz materna...
Sim, e aparece também um outro narrador
que acaba por cruzar esses dois planos,
o da religiosidade e o da maternidade,
e que tem essa forma em versículos
e também está dividida em capítulos, como
na Bíblia, e que de certa forma ali se apresentaria como um narrador…
Deus?
É assinalado como sendo Deus, o que por um lado é curioso porque também revela outra figura que está ali indirectamente e que é a do próprio criador do texto. Existe também uma mãe, que de certa maneira se apresenta como a mãe do autor, porque fala para quem está a escrever e comenta aquilo que está a ser escrito, muitas vezes com alguma dureza e sentido crítico, e que pretende representar a mãe que sempre permanece em nós e fiscaliza os nossos gestos, as nossas ideias.
E que muitas vezes é incompreendida, como o livro também mostra.
Sim, mas a partir de certa altura acaba por se desdobrar num paradoxo porque é sempre uma voz criada pelo próprio autor. Nunca é efectivamente a voz da mãe, e isso tenta exprimir um pouco a questão que é a relação com os progenitores, seja ela qual for, mas também o quanto essas figuras têm uma dimensão que é supra-humana e transcendente. Quando nascemos as nossas mães já estavam cá, habituámo-nos a que elas nos garantissem uma quantidade de coisas no momento em que éramos indefesos e não tínhamos possibilidade de as garantir. Só mais tarde começamos a perceber que as nossas mães são humanas e têm outra dimensão para lá daquilo que é mais evidente para nós, porque há muitos aspectos dessas vidas que normalmente escapam aos filhos mas existem e é importante ter em consideração se as quisermos amar como elas são, como mulheres e como pessoas.
“Em Teu Ventre” também não procura julgamentos sobre os acontecimentos e realça-os sob o olhar das crianças, com ênfase em Lúcia.
Isso tem a ver com essa escolha de tratar o assunto pelo seu lado histórico. Obviamente, há sempre um aspecto interpretativo daquilo que são factos, mas depois também existem os próprios factos. Por muito que olhemos para as crianças e possamos ver-lhes características já adultas, a verdade é que eram crianças e de uma idade bastante tenra. Ao mesmo tempo, também me parece que interessante trazer alguma clareza sobre aquilo em que não há dúvidas, porque quanto à fé não me parece que haja argumentos que sejam absolutamente inquestionáveis e permitam dizer que as aparições foram ou não efectivas. Isso terá sempre de ser uma escolha que parta da sensibilidade de cada um, da forma como vê o mundo e das questões do transcendente e do divino. Estamos a referir-nos a acontecimentos que tiveram lugar numa época que não testemunhámos, o que temos são relatos e relatos que, contrariando a natureza, põem as coisas nesse ponto. A minha forma de lidar com isso no livro foi não descrever esses momentos, porque ao descrevê-los iria sempre tomar partido. E neste caso vou tendo as minhas próprias convicções e sensibilidades mas não me parece interessante estar a impô-las aos outros. Ao fazê-lo iria mutilar o livro da sua intenção principal, que é fomentar a reflexão sobre um assunto que está presente com muita frequência mas é pouco aprofundado e ao longo do tempo foi ganhando diversas conotações.
Este era um tema de que se falasse em sua casa, em família?
Não é um assunto particularmente próximo por essa via, embora a minha educação tenha sido toda católica. Andei na catequese, fiz a primeira comunhão, tive sempre contacto com esse mundo. Mas sinto que, em relação a esta história em particular, a forma como ela me foi contada quando era criança ainda é aquela que se utiliza para a contar à maioria dos adultos hoje em dia. Uma versão infantil e infantilizada, algo grosseira, que distorce elementos importantes da história real. Enquanto adultos que nos interessamos por conhecer a realidade que nos rodeia, é importante que exista uma tentativa de a contar de uma forma mais realista. Obviamente, isto é um livro de ficção, não é um manual histórico sobre esses acontecimentos, mas sinto que existe também uma certa procura de realismo. Fiquei muito contente por perceber que os católicos e as instâncias católicas mais ciosas desta história, de um modo geral, têm aceitado que se trata de uma reflexão.
Como tem sido o feedback da Igreja a este livro?
Não tive uma reacção exacta por parte de nenhuma hierarquia, mas tive alguns sinais que me deixaram muito contente. A primeira apresentação do livro foi feita em Fátima e na presença de figuras bastante ligadas ao culto mariano e até com algumas responsabilidades. Ao mesmo tempo, a primeira entrevista sobre este livro foi para a Rádio Renascença, a emissora católica portuguesa. E isso deixa-me muito contente. Em nenhum momento quis que este livro fosse uma provocação ou agressão à fé em relação a Fátima ou à Igreja. Houve até alguns aspectos que mostram isso, um deles tem a ver com as fontes que escolhi para seguir e construir esta narrativa.
José Luís Peixoto.“A Coreia do Norte tem mais de nazismo que de estalinismo”
Graças às comemorações do 100.º aniversário de Kim Il-sung, o escritor português conseguiu ir à Coreia do Norte para uma visita rara que deu um livro: “Dentro do Segredo” já está nas bancas
Manuel Vicente
“Ultimate Mega Tour” foi o nome do pacote que José Luís Peixoto comprou à agência chinesa que organiza viagens à Coreia do Norte assim que a ideia de visitar o país se cimentou. Antes de passar a fronteira (por onde também não passam telemóveis estrangeiros nem livros) para entrar na sociedade mais fechada do mundo, o escritor assinou o compromisso de não escrever nada sobre o país. Mentira piedosa animada por “D. Quixote de La Mancha”, o livro que levou escondido na mala e que esteve para ser o fio condutor de “Dentro do Segredo”.
Acabou por não ser. Mas o relato inédito da experiência – da gastroenterite que apanhou por beber água do poço da casa de infância de Kim Il-sung a nunca ter visto dinheiro a ser usado – vale por si só.
Porquê ir à Coreia do Norte?
O grande motivo foi justamente encontrar um desafio que me estimulasse, a possibilidade de ir a um país à partida de tão difícil acesso. E foi uma paixão assim que me permiti ter esse sonho.
Antes de ir, morre Kim Jong-il.
A verdade é que – agora ando com esta coisa de dizer “a verdade é”. Ignorar [diz para o gravador]. O que acontece, ou como diriam os tipos dos reality shows ‘É assim’ [risos], na Coreia do Norte a liderança de Kim Jong-il era importantíssima. Aqui em Portugal acredito que a sua morte tenha sido apenas uma curiosidade da política internacional, mas a mim disse--me muito, porque já tinha diligências feitas para ir e a morte pôs o país – e a minha viagem – numa grande interrogação.
O que esperava antes de ir?
Tinha tudo a ver com o que lia sobre a Coreia do Norte, existem informações contraditórias sobre a realidade efectiva do país. Havia até coisas que achava que não iam acontecer da forma como aconteceram. Acabei por ser surpreendido pela positiva, porque ia preparado para uma realidade ainda mais fechada. Se bem que, a partir de certa altura – e isso nota-se no livro – comecei a quebrar.
Pela falta de ligação ao exterior?
Exacto, e pela opressão que estava sempre presente em todos os momentos, desde que acordava até ao fim do dia.
Só a sua mãe e irmã é que sabiam onde ia e no livro diz lamentar não ter podido contar aos seus filhos. São novos?
Um tem 15 anos e é muito interessado em política internacional. E o outro tem oito.
Porque decidiu não lhes contar?
Achei que podiam não compreender. Mesmo com o mais velho temi que pudesse perturbá-lo. Associamos a Coreia do Norte a um país que envolve alguns riscos e confesso que, a partir do momento da morte de Kim Jong-il, também senti que podia haver riscos. E a viagem foi feita num momento de tensão em torno do lançamento de um foguete que o Estado norte-coreano dizia estar destinado a pôr um satélite em órbita.
Que foi um lançamento falhado.
Mas que foi feito e feito contra os Estados Unidos, que não só avisaram a Coreia do Norte que não o fizesse como ameaçaram com sanções que se vieram a verificar. EUA, Japão e Coreia do Sul temiam que pudessem ser testes nucleares.
No livro fala em ameaças latentes aos turistas em caso de desrespeito das regras, que não se concretizaram.
Eram sobretudo decorrentes do medo de cada um e do que cada um tinha lido sobre a Coreia do Norte, nuncaeram efectivas. Embora fosse visível um certo terror no olhar dos guias face a esse desrespeito.
Sabia que não podia levar livros?
Soube mesmo já na fronteira.
Mesmo assim levou o D. Quixote.
Confesso que, apesar de ir contra as regras, via o D. Quixote como uma infracção menor. Para já, porque era em português, uma língua muito pouco acessível na Coreia do Norte [risos]. Mas também porque é uma obra literária de referência, não é propriamente um texto subversivo ou que possa ser visto como ofensivo, embora seja um livro proibido como qualquer outro, e isso acaba por ser impressionante. É até uma lição, porque aquele país ignora completamente o meu mundo. Nenhuma obra literária de referência está disponível. Todos os livros publicados são propagandísticos. Até refiro isso de passagem no livro, a propósito de uma visita a uma livraria em Pyongyang, a livraria internacional...
Onde comprou alguns livros...
Muitos. Mais que os que refiro.
Propagandísticos?
Pois [risos]. De biografias dos líderes a outros. Mas achei que o “D. Quixote” faria sentido do ponto de vista do paralelismo. Já tinha lido o livro, mas levei a versão do Aquilino Ribeiro, que nunca tinha lido e que foi editada aqui, curiosamente [pela Bertrand]. Aliás, pedi-lhes essa edição e eles não sabiam para que a queria e depois ficaram surpreendidos ao saber que ela foi à Coreia do Norte e veio. Em certo momento até achei que podia ser interessante escrever este livro estabelecendo um paralelismo com a leitura de D. Quixote. Por outro lado,também quis levá- -lo porque supunha que iria sentir saudades da língua portuguesa e o Aquilino Ribeiro tem todo esse aconchego.
No início do livro diz que, enquanto estamos a lê-lo, estará com o seu advogado a tentar reverter o compromisso de não escrever nada sobre a viagem.
No momento em que escrevi essas palavras elas eram reais, quando acabei de escrever o livro já não eram. Mas decidi mantê-las porque achei interessante essa chamada ao presente. Foi angustiante em alguns momentos, mas depois de voltar e já no processo de escrita percebi que poderia fazê-lo.
Para já não teve problemas.
Mas se o livro acabar por ser traduzido terá repercussões diferentes. Em Portugal não temos embaixada da Coreia do Norte, mas noutros países existem e é sabido que é através delas que se estabelece o controlo do que é feito fora do país. Vamos ver. Para já estou tranquilo.
É interessante quando, a dada altura, começa a aperceber-se da liberdade das crianças em Pyongyang, que contrasta com tudo o resto que descreve.
Sim. A Coreia do Norte tem uma sociedade única, muito repressiva em quase todos os momentos, mas as pessoas têm de viver. E por isso existem escapes que fazem com que a vida seja possível e, em muitos aspectos, até agradável. Sobretudo em Pyongyang, vê-se que a vida decorre de forma serena e agradável. Para já, as pessoas não conhecem o mundo fora da Coreia do Norte e a construção que lhes é apresentada desse mundo é pintada com cores muito negativas. A maioria das pessoas acredita que vive no país mais desenvolvido do mundo. E depois existem efectivamente alguns aspectos da vida social mais ligeiros do que aqui. Quem tem filhos sabe que se os perder de vista durante um minuto a angústia é grande. E na Coreia do Norte isso não se sente dessa forma.
Também por ser militarizada?
Sim, acho que se pode fazer esse paralelismo, mas há outras circunstâncias a contribuir para isso, até a própria cultura. Por exemplo o aspecto do trânsito: não há quase nenhum, nem na capital.
E nunca se vê ninguém usar dinheiro.
Sim. Além de um conjunto de notas fora de circulação à venda como recordação, que eu por acaso comprei, nunca vi dinheiro a ser usado. Mas houve um momento que optei por não referir no livro porque achei que podia ser… Constrangedor não é a palavra, podia ser algo perigoso...
Que momento foi?
Uma pessoa da Coreia do Norte que propôs de uma forma disfarçada que podíamos comprar-lhe notas em circulação. Eu não fiz isso, não as comprei, achei que não valia a pena correr o risco. Não sou coleccionador de notas nem iria fazer nada com elas. Mas é verdade que isso foi uma coisa que me chamou muito a atenção. Lá praticamente não há comércio, é muito escasso, às vezes existem pequenas bancas, a maior parte apenas tabuleiros com coisas em cima, duas ou três peças de fruta, cigarros, garrafas de bebida...
Também não há papéis no chão.
Em sítio nenhum. Nem beatas!
Mas vêem-se pessoas a fumar.
Sim, os coreanos fumam muito e em todos os lugares. No avião para Pyongyang, no comboio... Como era antes aqui. Os cigarros imagino que não sejam atribuídos pelo Estado, mas a maior parte dos bens, seja comida, seja vestuário, são. Porque não é claramente às lojas que as pessoas vão buscar os alimentos. Já a roupa é muito limitada, a maioria das pessoas tem roupas muito semelhantes, muitas vezes próximas do uniforme militar.
O seu grande arrependimento na viagem foi beber do poço de Kim Il-Sung?
[Risos] Sim, sim!
Mas não chegou a ir ao hospital.
Não, nunca. Em todos os momentos senti que a má disposição ia passar, como efectivamente passou, mas é irónico que tenha acontecido no poço da casa de infância do Kim Il-sung, A verdade é que isso também mostra como uma visita à Coreia do Norte anda sempre à volta desses temas. Há um momento no livro em que falo do cansaço que sentia ao ouvir o nome dos líderes, porque era permanente. Em todos os momentos. Há um documentário da National Geographic sobre a Coreia do Norte em que uma jornalista acompanhou um médico indiano que foi fazer tratamentos às cataratas de pessoas que tinham cegado e um momento muitíssimo impressionante é quando tiram as vendas às pessoas que foram operadas. A primeira coisa que todos eles fazem é dar graças a Kim Jong-il e dizer que agora felizmente já têm a visão restabelecida para o poder ver e venerar. Isso é, de certa maneira, uma imagem muito poderosa do que é a vivência do culto da personalidade na Coreia do Norte, que ultrapassa tudo o que eu já vi do ponto de vista de cultos, até religiosos. E eu cheguei
há duas semanas da Índia, onde as pessoas acreditam que vão reencarnar.
Diz que, ao contrário do que se pensa, a Coreia do Norte não é o último reduto estalinista.
Acho que é o último e o primeiro reduto de algo que terá muito mais a ver com o nazismo do que com qualquer outro regime conhecido, porque existem do ponto de vista ideológico marcas nacionalistas evidentes em todos os aspectos e momentos da vida do país. E depois existe também um discurso racista que diverge bastante do discurso estalinista. Os inimigos do país, como os EUA, eram sempre retratados traçando uma diferença importante entre os líderes e o povo, mas no caso da Coreia do Norte as qualidades negativas são atribuídas tanto aos líderes como à população. Aliás, existem representações de crianças americanas ou japonesas em
que surgem desfiguradas e com um aspecto assassino.
O que mudou no seu imaginário do país agora que lá foi e voltou?
Continuo a alimentar esse imaginário, porque há muito que não vi e há muito que só posso imaginar. Mas ao mesmo tempo tornou-se um lugar muito mais concreto. Recordo o olhar das pessoas que lá ficaram e isso traz uma certa dor, parecida com aquela que trago comigo quando visito prisões. A sensação de sair e saber que eles continuam lá.
Agora o seu filho mais velho já sabe que o pai foi à Coreia do Norte.
E ficou muito surpreendido e impressionado ao saber que alguns telefonemas que recebeu vinham de lá. Ele pensava que eu estava na China, que já é um lugar distante e misterioso, mas a Coreia do Norte supera esse fascínio. No livro digo que os meus filhos, até os meus netos, um dia vão ter curiosidade de saber como foram estas aventuras e acho que este livro é um bocado isso, um documento do que é a Coreia do Norte e também do que é ser eu, porque vem tudo do interior dos meus pensamentos.
“Abraço”, o novo trabalho do escritor, chegou ontem às livrarias. Um conjunto de memórias que comemoram dez anos de escritos do autor. “É um livro que pretende ser positivo”, diz
José Luís Peixoto chega tranquilo. Mãos nos bolsos, sorriso terno e um punhado de histórias para contar, tantas que a entrevista teve de ser cortada a metade, porque o tempo passou, e chegou a hora do escritor seguir para o Porto para apresentar o mais recente livro, “Abraço”, nas Quintas de Leitura. Uma apresentação de dois dias, em moldes diferentes, para um livro que comemora dez anos de escrita. Um conjunto de recordações a partir de textos que José Luís Peixoto publicou nos mais diversos sítios desde 2001. Ao contrário do que se possa pensar, “Abraço” não é um livro de crónicas. Os textos são ligados por um fio, que lhes dá princípio, meio e fim.
Podemos dizer que este é um livro de memórias. Das suas.
Sim. Tudo se fica a saber nesse livro, ele conta a minha vida ao pormenor. Para mim não é de maneira nenhuma... [Pausa]. Para mim estamos aqui a conversar, não há nada off the record. Alguém que publica um livro destes não tem off the record.
Ao longo do livro há vários abraços descritos. O que significa este livro?
Este livro não é um depósito de textos ou uma limpeza da gaveta. Este é, efectivamente, um livro. Organizá-lo foi uma tarefa complicada, deixei de fora mais do que o dobro do seu tamanho [657 páginas].
São dez anos.
Estes são os textos que considero válidos.
Válidos?
Que merecem continuar a ser lidos. Queria um livro que tivesse uma narrativa e unidade interna. Tê-lo conseguido é um dos meus maiores orgulhos.
É por isso que não o assume como livro de crónicas?
Tenho alguma dificuldade em entender o género crónica. É útil e felizmente temos uma boa tradição de espaço para crónicas na imprensa, na medida que permite ao autor ter um contacto mais corrente com o leitor, uma vez que os romances demoram muito a escrever. Quem escreve até beneficia porque evolui a sua escrita. Mas em termos do conceito literário de crónica já tenho duvidas, na medida em que tudo é crónica. Até a ficção é crónica de alguma coisa, daquilo que conhecemos, que vivemos, do que somos. Neste livro existe um fio autobiográfico que acaba por fazer, sem erro, que o consideremos como livro de memórias. No entanto fiz questão de incluir textos ficcionais que nem sempre são óbvios para quem lê.
Porque mesmo em ficção a sua escrita é autobiográfica?
Todos os textos têm sempre presente tanto a autobiografia como a ficção. Isto é paradoxal, mas faz parte. As palavras que utilizamos e a forma como estruturamos as narrativas, são o reflexo do que somos. Se por um lado nunca podemos descrever aquilo que desconhecemos, também é verdade que ao passarmos essas experiências pelo nosso filtro, retiramos-lhe a imparcialidade absoluta. Há, portanto, um carácter tendencioso e em certa medida, ficcional.
Algumas interpretações podem não ser agradáveis. Convive bem com isso?
Convivo e procuro-as de uma forma feroz. De alguma forma este carácter tão autobiográfico do “Abraço” é um reflexo da minha necessidade de me pôr em causa de cada vez que escrevo. Se escrever algo em que as pessoas acreditam, é positivo. Mesmo que isso faça com que as pessoas tenham uma visão negativa de mim, enquanto personagem. O leitor não é indiferente à ideia que possa ter do autor. Muitas vezes chego a intimidades bastante constrangedoras, mas que são uma experiência.
Já aconteceu escrever coisas e depois de uma interpretação do leitor, desvendar outras em relação ao que escreveu?
Muitas vezes há coisas que me são mostradas sob uma luz que não tinha considerado. Mas nunca sobre mim próprio. Não me conheço totalmente, mas em relação aos leitores tenho consciência que aquilo que eles podem construir sobre mim é uma personagem. E uma personagem é sempre menor que uma pessoa. Mas admito que este livro dá muitas pistas sobre mim, vai ser difícil contar histórias, sem me repetir, a quem ler o livro. As minhas histórias estão todas aí [aponta para o livro].
Recriou três conversas para o dividirem três partes -uma como seu filho mais novo, a segunda como mais velho e a última consigo próprio. Qual a dose de realidade e de ficção?
Há ficção claro, as conversas não aconteceram naqueles moldes, mas são pilares do livro. A primeira é muito importante porque aparece no início, quando se lançam pressupostos do que vai ser o livro. No fim da conversa com o André [novo] chegamos à resposta: “Porque o amor”. Esse é o grande centro do livro. É um livro com muito afecto, que pretende ser positivo e fazer bem.
Não é uma escrita dura e crua como estamos habituados.
Nem pensar. O início é tranquilo porque é infância, alentejana e feliz, quase com um olhar saudoso. Há momentos mais difíceis no livro, mas sinto que o balanço foi feito. Olho para este livro e percebo que a minha vida tem sido gratificante. As experiências dolorosas fizeram-me crescer e sinto-me privilegiado.
Estão presentes várias relações familiares e de amizade. No entanto parece que é dedicado aos seus filhos?
Não tenho dúvidas que os meus filhos são os meus maiores feitos. Percebi que poderia ser não apenas uma forma de estruturar o livro, mas poder dizer-lhes: “Isto é o que eu sou”.
É uma carta aberta aos seus filhos?
Pode ser. Espero que muitas pessoas possam ler o livro, mas em última análise, no futuro, os destinatários são os meus filhos. A paternidade sempre esteve presente em tudo aquilo que escrevi. Primeiro como filho e aos poucos como pai. Sempre me trouxe muitas questões e me fez saber mais sobre mim. Percebi melhor o meu pai. Quando escrevi o último romance [“Livro”] percebi que de alguma forma o meu pai era eu. Quando nasci ele tinha todo aquele tamanho porque já cá estava. Mas depois eu fui pai. Não sei como dizer... [pausa]
Tomou o lugar dele?
No sentido em que os meus filhos me viam como eu o via a ele. Então havia um desfasamento porque sou uma pessoa com fragilidades, defeitos e múltiplas questões. Claro que imaginar os meus filhos a ler alguns dos textos causa-me algum pudor. E isso já não acontece se pessoas que não conheço os lerem. É a tal coisa que falava antes de me pôr em causa com verdade.
Neste caso com as pessoas próximas.
É fundamental humanizarmo-nos, espero que o livro consiga fazer isso. Mitificamos demasiado as pessoas, tanto políticos, como personalidades. Parece-me um sinal de desconhecimento.
Num dos textos diz que deseja que não exista pudor na relação pai/filho. Como era com os seus pais?
Acho que sim. Os meus pais são de outra geração, um nasceu nos anos 30 e outro nos 40, e cresceram num meio em que as relações entre pais e filhos eram diferentes. Sempre os tratei por “você”, não pela via Cascais, mas por um certo distanciamento e respeito. Não estou a criticá-los, acho importante que os pais sejam pais, mas há limites que devem ser limados.
Há três ilustrações no livro. Fale-nos delas.
Dizem respeito a um texto específico. A primeira são as notas da 1ª classe. Dizem que sou “irrequieto e falador”. Pensei chamar assim este livro, é algo que me define um pouco. A segunda é uma entrevista, um pouco radical, à banda que tive aos 18 anos, Hipocondríacos. A última é um autógrafo do Saramago dirigido a José Luís Pacheco, havia muita gente que me chamava assim.
Por falar na banda. A música está muito presente na sua vida e era acérrimo frequentador do Luxe da Bica. Ainda?
Já fui mais, tenho uma vida muito agitada, mas hoje em dia não passa por aí. Acho que já não vou ao Lux há três anos, e à Bica há uns meses. Aproveito o tempo para escrever e ler. Como viajo muito, gosto de sair à noite fora de Portugal. Mas aqui vou a muitos concertos. Por exemplo [começa a procurar qualquer coisa no bolso], já tenho comigo um porta-chaves [mostra] que dá para guardar tampões para os ouvidos. Ou seja, já é de outra maneira. Já me preocupo em ficar surdo. [risos]
Tem feito letras para músicos e o próximo CD do Jorge Palma tem uma letra sua.
Isso é um feito. Quando fizer a contabilidade da minha vida vou dizer: “Eh pá, fiz uma letra para o Jorge Palma. Fantástico!” A música tem estado presente na minha vida de uma forma diferente e espero que permaneça. Também fiz letras para os Da Weasel, para fadistas e grupos dos mais diversos, até de metal.
Ainda ouve heavy metal?
Claro, sempre esteve presente. Às vezes sinto que o metal é uma vocação. Não sei definir, exactamente, porque é que o género me fala tão profundamente. Comecei a ouvir com 11 anos.
O que lhe trouxe a infância no Alentejo?
Estrutura. Trouxe-me a minha visão do mundo e como encarar o tempo. Não é uma questão pequena. Diz-se que a fotografia é feita com luz. A escrita é feita com tempo. Não tenho dúvidas.
Por um lado, o Alentejo e Natureza, por outro, a imagem de escrever num lugar escuro, janelas fechadas. Como é feito este equilíbrio?
Escrever é um momento em que se olha para dentro, é, muitas vezes, recordar com os olhos abertos. Não é fundamental ter um grande apelo do exterior, uma grande paisagem, não ajuda à escrita. Distrai.
Tem uma relação obsessiva com a escrita?
Sim, quando estou envolvido na escrita de um romance faço coisas com menos frequência: tomar banho, comer, cortar as unhas [mostra as unhas compridas]. As pessoas próximas sabem que fico ausente. São momentos solitários, mas bons.
Foi pai do João aos 22 anos e o seu pai tinha falecido um ano antes. Como é que se fez esta mudança?
Foi um momento determinante e teve uma repercussão imensa no que escrevo. Foi o momento em que escrevi os meus primeiros livros. O “Morreste-me”, o “Nenhum Olhar”, que nascem dessa constatação de ter terminado uma idade, que para mim era tudo. E ter começado outra de uma forma abrupta e para a qual eu não estava totalmente preparado. Daí que essas questões da paternidade estejam sempre presentes. Os pais são o passado que nós conseguimos compreender.
Qual a mensagem global do livro?
O centro é o amor, mas existem outros temas: a escrita é um tema muito importante, as viagens, a interrogação sobre o meu próprio lugar no mundo. Sinto que é um livro que pretende ser apaziguador.
Reconfortante.
É uma boa palavra. Tenta ser aquilo que um abraço é. Que se oferece sem reservas e que não pede nada em troca.
É a mensagem mais importante para os seus filhos?
Sim. Quando se encontra alegria e prazer em dar, somos ricos.