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Recortes sobre José Luís Peixoto e a sua obra.
José Castello*, Colaboração para o Estado
Há mais de meio século, Vinicius de Moraes já nos alertava que a poesia não está nas palavras, mas na vida. Na era das mentes turbinadas e do culto à adrenalina, nada melhor do que retornar à lentidão das pequenas coisas e a, partir delas – muito além dos livros –, procurar a poesia. Parece simples, talvez redutor, e até ingênuo, mas não é fácil. Os que preferem ver a poesia como artifício e jogo, como uma tarefa de especialistas, na verdade se esquivam do assombro que ela desvela. Evitam, assim, o que eles mesmos dizem cultuar.
Temas antigos, mas sempre futuristas, como o amor, a liberdade e a morte, persistem nos livros de poesia que realmente importam. Agora mesmo leio A Criança em Ruínas, do português José Luís Peixoto. Nele encontro, mais uma vez, uma poesia que não se contenta com a exibição intelectual. Que deseja ultrapassá-la, cavar fundo sob o manto de letras, para chegar aos fundamentos de sua própria voz. Em tempos tão fúteis, este parece ser um trabalho sem sentido. Buscar sentido – isso hoje não faz mais sentido; interessa apenas produzir efeitos. De modo que os poetas parecem seres em fuga, quando é bem ao contrário: se você olhar a paisagem na direção correta, verá o quanto, na verdade, eles nos ultrapassam.
Poetas como Peixoto escrevem com a consciência de que, a cada palavra, têm menos nas mãos. “Sou um erro propositado e sou erro/ maior por isso”, ele nos diz. A cada verso escrito, é todo um mundo que fica para trás. A questão, portanto, não é deter-se nas palavras, não é “enfeitá-las” com o recurso do artifício ou da novidade: mas perfurá-las para examinar o que detrás delas se esconde. Aqui o verdadeiro poeta se arruína: ao escrever, ele destrói aquilo mesmo que escreve. “Sou a erosão de mim próprio”, diz Peixoto, ciente de que escrever, muito mais do que um exercício de inteligência ou de mestria, é perder-se de vista. Ao escrever, o poeta se exclui, deixando as palavras como restos de seu esforço.
Não devemos – como fazem os novos poetas esnobes, com seus óculos da moda e sua mente intoxicada de citações – nos deter na fulguração da letra. O esnobismo é isso: afetação, busca da superioridade, e também um desejo escondido de vingança contra aqueles que apenas fazem. “A letra p não é a primeira letra da palavra poema”, nos alerta Peixoto em sua Arte Poética. “O poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma.” Algumas linhas à frente, ele esclarece ainda melhor: “O poema é quando eu não conhecia a palavra poema.” Anterior à própria letra, o poema é a ruína do poeta.
Mas aceitar isso – que a poesia se antecipa ao poema – é aceitar, ao mesmo tempo, a presença de elementos fugidios e não domesticáveis, como a intuição, o recolhimento e o silêncio. Admitir que o poema só se faz porque existe alguma coisa antes dele que o sustenta e o engendra. Os poemas “não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são/ bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema”. E esclarece, em versos ainda mais escandalosos: “não é a/ raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos/ conhecer o que possuímos e não possuímos nada.”
Aceitar, portanto, não só a limitação atroz que nos constitui, mas a corrosão persistente que compõe a vida. Aceitar que quanto mais falamos – quanto mais escrevemos – menos nós sabemos. E, no entanto, é nessa perseguição do sentido, além, muito além da rede de palavras, que a poesia reside. Os esnobes, com suas teses espantosas e seus muxoxos, pouco sabem da poesia. Lembro aqui de uma observação nada consoladora de Clarice Lispector: “Mas é que o erro das pessoas inteligentes é tão mais grave: elas têm os argumentos que provam.” Ao escrever, nos mostra Peixoto, em vez de elucidar, o poeta devasta: “entre as palavras da minha voz, as minhas palavras, renasce/ um silêncio.”
Aqui, a própria letra se torna corrosiva e mortal. “A palavra poema existe para não ser escrita como eu existo/ para não ser escrito.” Afirma, assim, a primazia da vida sobre o poema. Para poetas como ele, a poesia sempre escapa; por mais que se escreva, está sempre em outro lugar. É como ele diz sobre o amor, em outro belo poema: “o amor é saber/ que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.” A poesia também. E por isso, toda assinatura, toda vaidade, não passam de uma fraude.
*José Castello é jornalista, mestre em comunicação pela UFRJ e escritor. Autor de 'Ribamar' (Bertrand Brasil) e 'A Literatura na Poltrona' (Record), entre outros
Capa do livro 'A Criança em Ruínas', de José Luís Peixoto
A Criança em Ruínas
Autor: José Luís Peixoto
Editora: Dublinense
Por José Castello
Perdi meu pai no ano de 1982. Um longo silêncio se estendeu diante de mim. Trinta e três anos depois, a sombra de meu pai retorna nas páginas de um livro: "Morreste-me", do português José Luís Peixoto (Dublinense). Leio a novela de Peixoto _ seu livro de estréia, lançado em Lisboa em 2000 _ com o coração apertado. Luz e escuridão se mesclam nessa narrativa de indisfarçável origem autobiográfica: ela é dedicada à memória de José João Serrano Peixoto, pai do escritor. Foi preciso que o pai morresse para que o escritor pudesse nascer. Hilda Hilst tinha uma explicação forte para isso: “Toda literatura nasce de uma tragédia familiar”.
A caminho da casa do pai morto, o filho constata: “Parto para o que sobra de ti e tudo são resquícios do que foste” É uma viagem fosca, atravessada pela grande sombra da morte. “Viajo no escuro que deixaste e chego finalmente a ti”. Na verdade, é a si mesmo que o narrador chega _ o que já se expressa no belo título, "Morreste-me". A morte do pai é, também, a morte do filho. Daí a urgência do retorno ao passado, da volta a esses resíduos que, se não restauram uma existência, pelo menos a simulam. É noite. “O negro líquido da noite a mover-se, a acordar em figuras redondas de água”. É a primeira noite que o pai não viveu.
A dor contamina todo o livro, derramando-se pelas frases e impregnando-se nas imagens tensas. O romance abre com três frases vigorosas: “Regressei hoje a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse”. As lembranças da agonia paterna se misturam à experiência de retorno, lançando o narrador em uma busca ainda mais atormentada. O pai se submeteu ao tratamento da doença _ um câncer incurável no abdômen _ sustentando a falsa esperança de sobreviver. Desde o início, a dor impôs à realidade a aparência de um teatro. Encenação cruel, ao fim da qual todos os cenários desabaram, restando só uma ausência.
“Comigo, a casa estava vazia. (...) As várias sombras da sombra de mim, imóveis, passeavam-se de corpo para corpo, porque todos eles, todos meus, eram igualmente negros e frios”. O frio também se alastra pelas páginas de Peixoto e nos faz tremer. “Pensei: não poderiam os homens morrer como morrem os dias?” Ao cair da tarde, “pássaros cantam sem sobressaltos e a claridade líquida vítrea em tudo”. A brisa é leve, as folhas dançam, o mundo se move lentamente para a noite. Chega-se, então, ao “silêncio esperado, finalmente justo, finalmente digno”. Por que, na morte dos homens, ao contrário, são tantos os temores? Por que há tanto lamento e tanto alvoroço? Não poderiam os homens morrer como os dias?
Em contraste com a voz muda do pai, reverberam alguns ecos. As coisas, mortas também, se tornam violentas. “Tudo o que te sobreviveu me agride”. As coisas são transpassadas por uma luz fina, “que agora és”. Esse pai transformado em luz persiste como um sol negro. Um sol detido em um intervalo do tempo, luz do que já não há. O que mais nela agride é a imobilidade. É ela, com sua colcha de mentiras, que faz o mundo doer. “Tudo quer e tenta ser igual”. Mas na barriga do mundo há agora um oco, vazio que “quer ser mundo ainda”. Não foi só o filho quem morreu com a morte do pai, a realidade morreu um tanto também.
A linguagem de José Luís Peixoto é dançarina. Só essa linguagem inundada de poesia pode ainda aproximar pai e filho. As horas se embaralham e o filho se vê pequeno, sentado no carro do pai, espremido pelo cinto de segurança, a perguntar quanto tempo falta para chegarem a seu destino. Naquela época, ainda fazia sentido perguntar pelo tempo. Hoje pergunta alguma suporta mais a noção de passagem. Os dois estão retidos em uma zona fixa, na qual só as sombras ainda conseguem se movimentar.
O filho passa a noite, sozinho, na casa vazia. O ar, então, se enche de perguntas. “Onde estiveste esta noite, pai? Procurei-te para lá da memória, nos cantos que só nós conhecemos, e não te vi”. No quarto, a cama está feita, a esperar o pai que não chegará. O rapaz remexe as gavetas, abre as portas do armário. Busca – o que? Em um impulso, veste as roupas do pai morto. Olha-se no espelho. “No reflexo, encontrei-te, vi-te passar a mão rapidamente pelo cabelo e alisar a roupa no corpo e acertar o colarinho da camisa”. O rapaz olha fixamente a própria imagem. Espanta-se: “Vi-me igual a ti, nas tuas feições firmes”. O pai morto renasce no filho vivo, que agora é seu pai também.
Sem o pai, as coisas perderam a vida. Na mesa de cabeceira, o relógio de pulso ainda marca inutilmente os segundos, “mesmo depois de ti”. O tempo já não serve para nada, é só um traste que devemos carregar. Insistente, o filho coloca o relógio no pulso: “Ainda as marcas de suor, ainda tu”. Em tudo, o pai permanece como nódoa, o que não é suficiente para soprar vida às coisas. Aturdido, o rapaz permanece ancorado ao grande sol negro. “Passei a noite sozinho. Contigo. Perto do silêncio absoluto”.
Resta ao narrador o “vazio que ficou dos gestos que não fazes, das palavras que não dizes, do olhar permanente que tinhas e já não poder ter”. É sobre o nada que o mundo agora se sustente. A noite: o lugar mais oco do mundo. O rapaz sente a morte do pai como um segredo que já não pode contar a ninguém. Nem a si mesmo. Percebe que a morte é o impronunciável. Que ela é algo que não se pode dizer. Se você diz, morto já não está. Só o silêncio contorna a morte.
Logo que amanhece, trêmulo como um fugitivo, o filho deixa a casa paterna. “Ninguém se atreveu nas ruas da minha passagem, só a cal e o sol e as casas permaneceram no lugar onde as conhecemos tantos dias”. Parece já não haver mundo, também, para esse filho que, sob a luz do sol, encarna o pai morto. Esquiva-se como um fantasma. Volta ao cemitério. No mármore frio, resta o nome do pai. “Tem o teu nome, pai. O teu nome importante, pai. Escrito para sempre, como as nuvens, como as coisas que não morrem”. Perfilado diante da campa, o filho se deixa invadir, ele também, pela grande estrela negra, astro paradoxal a emitir uma luz que, se ilumina, também mata.