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Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto, in Público, setembro 2019

10.10.19

José Luís Peixoto e o peso do nome Saramago

TEXTO DE JOSÉ RIÇO DIREITINHO

 

Autobiografia é um romance que desafia o leitor ao diluir fronteiras entre o real e o ficcional, entre espaços e tempos, entre duas personagens de nome José, um jovem escritor e José Saramago. Este é provavelmente o melhor romance de José Luís Peixoto.

 

O título, Autobiografia, e a designação “romance” inscrita, logo abaixo, na capa do mais recente livro de José Luís Peixoto (n. 1974), parece querer alertar o leitor para o jogo de ilusões que aí vem. E a leitura das primeiras páginas confirma essa ideia: há um escritor José [Saramago] e um aprendiz de escritor também chamado José [Luís Peixoto, pode o leitor presumir]. Ao fim de algumas páginas, percebe-se que é um livro que desafia a atenção de quem o lê: o jogo com os nomes, a mudança abrupta de cenas, as fronteiras ténues entre narradores e personagens, e adivinha-se que também haja essa diluição de limites entre espaços e tempos. A estrutura pouco comum, quando comparada com as dos livros anteriores do autor, torna de imediato Autobiografia um livro singular na obra de José Luís Peixoto.

 

“Esse começo foi consciente no sentido de mostrar que o livro vai ser assim até ao fim”, confirma Peixoto em conversa com o Ípsilon. “É uma espécie de manifesto desta minha proposta narrativa. Este é um romance que exige tempo de envolvimento”. Com o prosseguir da narrativa, Autobiografia vai-se alargando em várias dimensões – até porque um dos assuntos do livro é a escrita de uma biografia de Saramago pelo jovem aprendiz de escritor, José. Biografia que, à semelhança da “proposta” autobiografia de Peixoto, se vai tornando também ela ficcional.

 

José Saramago surge neste romance como uma figura de ficção alicerçada no real. Como personagem origina o jogo (ou os jogos) a que o autor se propõe, assim divergindo do caminho de reconstituição biográfica (que talvez fosse o mais natural e esperado pelos leitores). José Luís Peixoto, que afirma que “foi um grande esforço escrever este livro, uma grande luta”, conta um pouco sobre as opções que teve de fazer ao longo do tempo em que o escreveu (pouco mais de um ano): “Ao longo do processo de escrita, o livro teve dois ou três momentos em que tive de reavaliar tudo, de reorganizar toda a narrativa. Um dos princípios que me pareceu que poderia defender o romance ao nível desta questão da presença da personagem Saramago era integrá-la num jogo. E fazer com que o livro se movimentasse nesse campo da construção literária e não tanto no da reconstituição histórica da sua vida. Contudo, a dimensão histórica também é importante, e por isso, para lá das questões do enredo, da forma como a narrativa flui, dos anacronismos, houve depois uma outra construção, a do autobiográfico e do ficcional. O possível conhecimento que os leitores têm da vida do José Saramago, e da minha, em maior ou menor grau, também contribui para a leitura do livro. O simples facto de saberem que eu me chamo José como uma das personagens, e que o título é Autobiografia, já direcciona para uma forma de leitura. Mas depois há outras. Se o leitor souber, por exemplo, que eu ganhei o ‘Prémio Saramago' próximo da idade daquele jovem escritor, e que o ganhei com o meu primeiro romance.” E Peixoto prossegue dizendo que todos os seus livros, de uma maneira ou de outra, nem sempre evidente, falam um pouco de si, que vai deixando dados autobiográficos por necessidade: “Este livro tem muito de mim porque essa era a minha proposta. Mas que pode não ser tão evidente como as pessoas pensam. Por vezes o que as pessoas julgam ser mais autobiográfico não o é assim tanto. Outras coisas, eventualmente mais excêntricas, podem por vezes ser decalcadas da minha realidade. Isto tem a ver com a forma como eu depois valorizo o meu trabalho. Preciso de deixar essas coisas escritas, essas informações, para depois sentir que ele me diz respeito.”

 

Pacheco

A questão do aproveitamento (neste caso de uma coincidência) dos nomes das personagens feito por Peixoto ao longo do livro, não é um facto novo. Já no seu primeiro romance, Nenhum Olhar, há uma história em duas gerações, com um pai e um filho de nome José; e, mais tarde, em Cemitério de Pianos, há várias gerações que se misturam no tempo da narrativa, e em que pais e filhos se chamam ‘Francisco’. O autor reconhece esse seu recurso estilístico: “Funciona aqui como um jogo, e compreendo que por vezes possa não ser muito claro e que possa mesmo gerar alguma confusão, mas essa é uma das propostas que quis que estivesse presente. Até ao final da narrativa há momentos em que as coisas mudam bastante, em que há anacronismos, uma espécie de rasteiras para um leitor que esteja mais habituado a leituras cronológicas.”

 

Uma história curiosa ainda sobre nomes: num anterior livro de José Luís Peixoto, Abraço, há um texto intitulado “Pacheco”. Esse texto fala das muitas vezes em que lhe trocaram o nome, e há nele uma fotografia de uma página autografada com uma dedicatória com a data de 1997: ‘Para José Luís Pacheco, com a simpatia do José Saramago’. Peixoto conta, com um sorriso: “Essa foi a primeira vez em que estive na presença do Saramago, em que lhe pedi para me autografar o Memorial do Convento”.

 

Fazer de José Saramago uma personagem nuclear de um romance, pode não ser uma tarefa fácil se a forma escolhida for a da ficção: dialogar com a sua figura, com tudo o que ela carrega como representação social e literária, com as expectativas dos leitores, com a complexidade de leituras da sua obra. José Luís Peixoto confessa que tudo isto tornou o livro bastante trabalhoso. E conta como chegou à ideia do romance: “Tudo começou a partir de um conto que publiquei numa revista. Era um conto que tomava a história de D. Pedro e de Inês de Castro como eixo. A partir de certa altura, pensei escrever outros contos que tivessem como centro algumas personagens importantes da História de Portugal. Comecei a listá-las. E já na contemporaneidade a personagem que me pareceu mais adequada foi o Saramago. Seria uma personagem diferente porque eu o tinha conhecido. A ideia foi crescendo, e acabei por abandonar esse livro de contos. Tinha nascido a ideia de escrever um romance que integrasse o José Saramago como personagem central, não quer dizer que seja a principal. Partindo dessa ideia tudo se foi construindo aos poucos. O título só apareceu a meio da escrita do livro.”

 

 

Normalmente quando se escrevem romances temos fantasmas, imagens na neblina, imagens dos leitores que o vão avaliar. Neste caso eu tinha o rosto da Pilar

José Luís Peixoto

 

 

A linguagem

Para além de Autobiografia ter um tipo de arquitectura narrativa pouco comum nos romances anteriores de Peixoto, também a linguagem revela um trabalho diferente, quase diria mais cuidado e apurado. Na preparação deste livro, o autor leu tudo o que lhe faltava ler na obra de José Saramago. Não admira, portanto, que algum do ritmo desses romances por vezes faça assomo em Autobiografia, como se houvesse ali um ajustamento a fazer, mas é sobretudo na atenção ao pormenor, como se o olhar se fosse aproximando do objecto ou da acção, que se nota a diferença. “Não páro de ler enquanto escrevo. Abraço até as influências que então me chegam. Escolho as leituras em função do que estou a escrever. Pode vir daí uma certa musicalidade que se procura. Agiliza as coisas”, diz José Luís Peixoto. “Com este livro decidi desde muito cedo não fazer um pastiche da escrita do Saramago. Ainda assim, há certas escolhas, certos princípios, certos valores da escrita, que dificilmente não são absorvidos.”

 

Mas há ainda mais a considerar: uma espécie de hierarquia que Peixoto estabelece para os seus livros, e que dessa forma definem o nível de exigência da escrita. “Não é uma hierarquia de importância, mas os romances são os pilares do caminho que eu tenho feito. Se eu tiver que pensar nalguma coisa da minha vida, eu localizo-a sempre em relação aos romances que publiquei, a pessoa que eu era quando os escrevi. Os romances têm para mim esse significado pessoal de exigência de evolução, e de uma tentativa de balanço. O que nem sempre acontece nos outros livros, que cumprem outras funções, e têm outras exigências que nem sempre são tão exigentes como as dos romances”. E acrescenta: “Há um caso engraçado com o livro No Teu Ventre. Eu fiz finca-pé na editora para que aquilo fosse considerado novela, e é isso que aparece na capa. Mas depois, à medida que as pessoas foram escrevendo sobre o livro, foram-se referindo a ele como romance. Hoje também já o considero um romance”.

 

Mas não é apenas a forma escolhida para a narrativa que influencia muito os livros de Peixoto. Também a proximidade ao assunto, a natureza das personagens, a distância entre realidade e ficção, entre o concreto e o imaginado. “Há coisas que fazem muita diferença. Por exemplo no livro Galveias: eu já tinha escrito sobre esse espaço, mas sem o nomear, usando um nome ficcional. Não se consegue escrever certas coisas se não se tiver lá aquele nome concreto. O facto de o nomear [ao lugar de Galveias, onde nasceu] provoca que eu escreva de maneira diferente sobre ele. Acho que se passou o mesmo com Autobiografia, o peso do nome Saramago como personagem fez-me também escrever de outra maneira, foi quase uma obrigação”.

 

Para José Luís Peixoto havia uma espécie de “sombra”, um fantasma, a pairar sobre a ideia de escrever um romance em que José Saramago entrasse como personagem. O seu nome era Pilar del Río. “A Pilar soube do livro antes de eu ter escrito a primeira palavra. Esse foi um lado muito sensível. Isso era para mim muito importante. Aliás, a própria Pilar é referida no romance como personagem. E há um aspecto curioso, pois no dia em que conheci o Saramago conheci também a Pilar. Eu tinha de saber gerir isso. Normalmente quando se escrevem romances temos fantasmas, imagens na neblina, imagens dos leitores que o vão avaliar. Neste caso eu tinha o rosto da Pilar. Para mim foi um alívio enorme quando ela leu o livro e se mostrou satisfeita. Ela sabia que o livro é um artefacto literário e que aquele Saramago é uma personagem, que apenas sugere uma possibilidade de Saramago”. Mas Peixoto não sente que em algum momento, o facto de vir a ter Pilar como leitora do livro, o tenha constrangido ou condicionado. Ela nunca lhe disse o que esperava do romance. “Só quando o terminei ela soube alguma coisa sobre o livro. Imprimi-o e entreguei-lho ainda antes de o enviar a quem quer que fosse”.

 

(Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto)

 

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Crítica a Autobiografia, de José Luís Peixoto

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Público, 7 de Outubro de 2000

12.05.15

NÃO AS ESTRELAS, MAS O ESPAÇO NEGRO QUE AS SEPARA

Eduardo Prado Coelho

 

A data é fácil de fixar - no rodar do milénio, entre um século e outro século: 1999-2000. Quando alguns pensavam que a ficção portuguesa, esgotada nos seus nomes consagrados, tinha alguma dificuldade em renovar-se de um modo afirmativo e convincente, tivemos, de uma só vez, três nomes que mudaram por completo a imagem que lentamente se estava a construir: Pedro Rosa Mendes, em primeiro lugar, com "A Baía dos Tigres", na Dom Quixote; depois, ainda na Dom Quixote, Mafalda Ivo Cruz, com "A Casa do Diabo; por fim, na Temas e Debates, uma surpresa absoluta: "Nenhum Olhar" de José Luís Peixoto. São livros extremamente diferentes, embora todos eles marcados por uma visão impiedosa, e por vezes rasa, desolada, inclemente, da realidade. Se Pedro Rosa Mendes nos desconcerta com uma ficção desenvolvida segundo os códigos do relato de viagem, e onde dificilmente sabemos onde está a verdade e onde está o fingimento; se Mafalda Ivo Cruz consegue produzir situações de esvaziamento sonâmbulo que permitem uma batida cega do inconsciente; já José Luís Peixoto nos dá inesperadamente uma narrativa rural, feita de situações limite, onde evocamos algum Raul Brandão, é certo, mas agora, como os tempos são outros, cada movimento do texto nos leva a subir "os últimos degraus da noite" até ao lugar "onde os homens deixam de ser homens".

 

É extremamente agradável lermos um grande autor que já conhecemos, e, página a página, conseguirmos confirmar todas as suas qualidades. Avançamos em terreno balizado, sabemos com o que contamos, apreciamos sobretudo a perícia e o engenho na renovação. Mas há nesta forma de leitura uma espécie de conforto assegurado.

 

Já é diferente quando de repente nos vem parar às mãos um texto de alguém que não conhecemos, que não sabemos quem é nem o que faz. Começamos a ler com todas as reservas, espreitando numa página a página seguinte, cautelosos, cépticos como se transportássemos aquele olhar cansado que já atravessou o mundo desde o início, viu tudo e tudo ouviu, e já nada espera de perturbante na vida. E aos poucos a questão coloca-se: vou deixar-me cair desamparadamente dentro deste texto, submeter-me a ele, ao seu ritmo, à sua regra íntima, à sua respiração? Lentamente, todas as palavras antigas são agora novas, resplandecentes, inaugurais. E continuamos a ler para saber até onde será possível manter este exercício funambular de caminharmos sobre o vazio, em pleno voo de um texto, suspensos e disponíveis, deslumbrados e rendidos. É o que sucede com "Nenhum Olhar" de José Luís Peixoto.

 

O livro começa por nos envolver pela escrita. Desde as primeiras linhas que nós sabemos que não se trata aqui de contar uma história e conseguir transmiti-la bem; trata-se de inventar um movimento de escrita do qual decorre toda a evidência da narrativa. Ora José Luís Peixoto tem essa qualidade notável: bastam duas linhas, e entramos num continente novo, num lugar inédito do espaço literário. Depois, resta saber até que ponto isto vai ser possível sustentar-se ou desenvolver-se. E neste romance o leitor pode estar certo de que a partir da segunda ou terceira sequência ficamos seguros de que a inclinação é fatal: vamos embater num limite, num muro, num enigma, na origem do mundo e no desastre final, num empolgamento incontrolável dos seres, das palavras, dos sinais, das paisagens, das situações, numa altíssima conjura de que não poderemos escapar.

 

Coloquemos as coisas nestes termos práticos. Este livro é feito de dois livros, que repetem, com uma parente distância de trinta anos (rapidamente reabsorvida pela espacialidade mortífera da escrita), diversas situações - repete-as em eco, em rima narrativa, em complementaridade, em assimetria e desequilíbrio, em conspiração do destino. Donde, há uma prega, uma dobra, um vinco que faz que tudo se relança no absurdo de tudo ser definitivamente o mesmo. Mas não é: porque no interior da repetição (e em termos estilísticos, toda a força do discurso de José Luís Peixoto vem do uso mágico da repetição), agem dois tipos de forças. Por um lado, temos o processo entrópico: página a página, o vazio propaga-se, a destruição insinua-se, a crueldade cresce, a desrazão aumenta. Mas, por outro lado, as explosões multiplicam-se num clima de tal modo alucinatório que a cadência feroz do nada invasor se torna estranhamente eufórica, de um vazio esplendoroso. E os gritos, as súplicas, os fabulosos monólogos interiores, as crispadas interrogações voltadas para a cor sempre excessiva de um céu emudecido de deuses, criam-nos a certeza de que onde o deserto cresce cresce também a palavra que o nega.

 

É verdade que "o fundo invencível da morte puxou-te para o seu interior infinito. Vais, puxado, a cair a maior queda." É verdade que "estás morto e, dentro da morte, sabes que estás morto. Ambos o sabemos. O que imaginaste da palavra esperança perdeu o sentido. Não há esperança, porque somos demasiado pequenos, somos muito pouco. Somos uma agulha de pinheiro diante de um incêndio, somos um grão de terra diante de um terramoto, somos uma gota de orvalho diante de uma tempestade." E "não há forma de explicar tudo o que se diz quando se diz sofrer".

 

Mas há aqueles momentos em que um olhar toca outro olhar - ambos tocados já pela distância que desde logo arruina esse florir de uma presença. Porque neste livro em que as pessoas se destroem, se traem, se embrutecem, se maltratam, se emparedam em quartos forrados da noite mais espessa, há momentos raros, furtivos, siderais, em que essas pessoas se encontram: "... e achei que era assim que todas as pessoas encontravam alguém. Chegava uma pessoa vinda de lado nenhum, sem motivo para chegar ou com um motivo que não se entendia, e oferecia-se a outra pessoa, e essa pessoa achava tudo isso natural, porque era assim que todas as pessoas encontravam alguém, e era nesse momento tão grande que ambos se entregavam para a vida, sem olhar para trás ou pensar pouco, ambos se entregavam um ao outro para a vida, porque, a partir desse momento grande, toda a vida seria assim natural, inexplicável e grandiosa. Faltou-me saber que o que é num instante o mundo, não é o mundo sempre."

 

Mas onde alguém supõe que se atingiu o lugar do início do mundo, essa primeira manhã de todas as evidências, vai-se dar um comércio de morte que tem a ver com uma espécie de crime primordial que atravessa o tempo e que nos reenvia implacavelmente para "o negro absoluto da solidão, apático negro, absoluta solidão, eterno, eterna.". E aqui o encontro converte-se numa dádiva de morte: "a tua morte tem avançado para dentro de mim como uma doença a querer progredir."

 

Todo o livro é apenas este "western" a carvão e chamas em que dum lado se ergue a súplica indefesa de cada ser e do outro se expande o laço fatal duma repetição sem transigências. E daí que se possa dizer esta coisa simples e terrível: "a noite onde morreste anoiteceu no que sou". Neste livro o mundo é uma queda infinda. E apenas se lhe contrapõe o desejo insensato daquele que nos diz que "gostava que o mundo não fosse uma queda." Neste "western" metafísico e extremamente concreto, o herói positivo é a verticalidade de um sol improvável. E a figura do mal desenvolve-se através da pastosa irreversibilidade do tempo. E este produz um reincidente desacerto nos seres, que estão sempre desajustados da sua própria evidência: "porque nunca falámos e hoje é demasiado tarde". Tudo perdido, tudo em perdição incessante, porque desde sempre se viveu a partir de um equívoco desatento: "nunca ninguém se lembra de procurar as coisas onde elas estão, porque nunca ninguém sabe o que pensa o fumo, ou as nuvens, ou um olhar."

 

Neste livro, há na aldeia um homem que escreve. De janelas fechadas, isolado, emparedado como os outros, mas insistindo em escrever, em imaginar no cego confronto que despedaça os seres uma fala íntima que os transfigure. A grande força deste espantoso livro de José Luís Peixoto está aí: no modo como narra histórias que se dobram para dentro da sua própria loucura e no fio puríssimo de luz com que as vai reunindo e salvando do esquecimento. Tudo acaba, incluindo a escrita. Mas no limite de tudo acabar acaba também a própria morte, e entra-se num espaço inaudito e impensável: "o infinito era o infinito de não ser nem infinito nem nada". E se o mundo acabou, e já não há mais tinta para escrever, começa na página seguinte essa coisa extraordinária que é o fim do medo e da morte: "tinha morrido a memória da morte" e "o medo não existia porque não existia ninguém para o sentir". E é aí, neste lugar que não é vazio porque não chega a ser lugar, que tudo se pode repetir como se fosse a primeira vez: a partir de nenhum olhar, um olhar encontra um olhar, e o escritor inventa um livro. Para escrever, não sobre as estrelas, mas sobre o espaço negro que as separa.

 

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Público (Ípsilon), 1 de Outubro de 2010

15.05.14

Das Galveias para o mundo

 

Isabel Coutinho

 

Em "Livro" José Luís Peixoto conta uma história que não viveu, mas que os seus pais viveram: a da emigração para França nos anos 60. O escritor foi às Galveias, terra onde nasceu, lançar o seu novo romance.

 

O salão da Sociedade Filarmónica Galveense, onde José Luís Peixoto costumava ensaiar com a banda, até parecia pequeno, cheio de gente e de fotografias antigas nas paredes. Na primeira fila, atenta, a mãe do escritor - D. Alzira, que ainda vive nas Galveias, perto de Ponte de Sor, Alentejo. A vila que saltou para os seus livros e que está presente mais uma vez neste, "Livro", novo romance. Os amigos de infância, os que andaram com ele na escola, os só conhecidos, os conhecidos dos conhecidos, todos foram, segunda-feira à noite, à sessão de lançamento pedir um autógrafo ao escritor que deu as Galveias a conhecer ao mundo.

 

Aos 36 anos, José Luís Peixoto, "um dos emblemas de Portugal lá fora", como diz o seu editor Francisco José Viegas, volta a ser criança, a espreitar por uma ladeira da terra onde nasceu: "Ali era a casa da minha avó". Mais à frente, aponta para a inscrição em cima da porta da Igreja da Misericórdia de Galveias, "Misericordia tua magna est super me". Lembra que esta é a epígrafe de "Uma casa na escuridão", um dos seus romances.

 

"Independentemente de José Luís Peixoto ser um dos autores portugueses mais traduzidos no mundo, nunca esqueceu a sua raiz e permanece ligado às Galveias", continua Viegas, recordando que o jornal francês "Le Figaro", escreveu que o autor eleva até alturas grandiosas a literatura do seu país.

 

 

A vida de uma vila

 

 

Naquela noite Zé Luís, como todos o tratam, começou a autografar e não conseguiu parar. Cada autógrafo é personalizado e longo. Só assina depois de conversar com quem lhe estende o livro e lhe diz: "É para mim".

 

As Galveias são o seu lugar, são o centro do seu mundo. É inquestionável. Em "Livro" não chama "Galveias" ao lugar onde as personagens vivem apesar de ser o seu romance mais ligado àquela terra. "Não era preciso. Quem o ler - aqui nas Galveias - não tem dúvida do lugar onde se passa. Começa com um episódio na fonte que é, ao detalhe, a das Galveias." Enquanto nos romances anteriores o que estava mais em evidência era "a natureza, a terra", a vila era "mais o monte e os campos"; neste, está a vida da vila: "com as alegrias, as tristezas, os aspectos mais engraçados, os aspectos mais mauzinhos que existem na vida desta vila e de outras".

 

"Começa na fonte, passa pelo terreiro, anda por todas as ruas das Galveias", explica. "Em 'Nenhum Olhar' dei nomes bíblicos às personagens. Neste, todos os nomes são de pessoas das Galveias. Foram escolhidos por serem nomes bonitos que infelizmente estão em desuso. Ilídio, Adelaide, Galopim, Cosme, Josué, D. Milú. Nomes que fui buscar à minha memória. Aqui e ali também há histórias de pessoas que fazem parte da nossa história."

 

O romance também fala de um aspecto que diz muito às Galveias: a emigração para França nos anos 60. Embora no Alentejo a emigração tenha sido mais para outros países, o escritor tinha o exemplo dos pais que emigraram para França e viveram no lugar onde vive o Cosme, uma das personagens: Lagny-sur-Marne (uma das suas irmãs nasceu lá e outra foi muito pequenina).

 

Zé Luís, que nasceu em Setembro de 1974, um ano e meio depois de os seus pais voltarem de França, tinha "essa mitologia", "essa história", desse lugar onde nunca tinha ido mas de que ouvia sempre falar como sendo algo "completamente diferente" da vida que encontrava no Alentejo.

 

Quando regressou a Galveias, o pai, que era carpinteiro, edificou a casa da família numa parte da vila que estava a ser construída por outros emigrantes. Uma irmã da mãe estava emigrada em Inglaterra e "havia essa coisa de chegarem sempre a Galveias com coisas que não conhecíamos, brinquedos, jogos electrónicos, chocolates... Eu sentia muito o peso da importância de ser uma história que pertence a muitas pessoas e que são muito ciosas da sua história. E quem sou eu para estar a conseguir dizê-lo?"

 

Era esse o desafio.

 

"É uma história que já se ouviu muitas vezes. Existe até um estereótipo, que em termos de enredo acaba por ser pouco interessante na medida em que toda a gente a conhece de alguma forma. Não a vivi pessoalmente, mas achava que seria um desafio grande contá-la e capturar essa intensidade."

 

Até agora, o seu método de trabalho tem sido sempre o mesmo: uma ideia inicial a que vai acrescentando outras. "Existe depois um período em que estabeleço uma série de pressupostos, uma série de 'regras' que vão ser pilares na construção daquele texto."

 

Para tentar capturar o que levou tantas pessoas a embarcar numa "aventura tão grande", para a qual é preciso "tanta coragem", como esta de ir viver para um país onde não se conhece a língua, e tem mentalidades e costumes diferentes, Peixoto imaginou muito o que seria chegar a França nos anos 60 ou, para tantos das Galveias, o que seria chegar a Inglaterra ou aos EUA nos anos 70. "Tal como imaginei sempre o que seria para a minha madrinha, que vivia ali no alto da Praça, entrar no hipermercado Continente. Porque eu sempre sabia que ela ficava impressionada com pequenas coisas que havia aqui nas mercearias...", emociona-se.

 

A questão dos pais, ou do pai em particular, tem estado sempre presente na sua obra. "Não consigo ficar indiferente", explica Peixoto, que viu o pai definhar com cancor e escreveu "Morreste-me". Em "Livro" a questão do pai e da filiação é muito importante e de certa forma é uma novidade: porque existem dúvidas acerca do pai.

 

"Eu próprio sou pai - o meu filho mais velho vai fazer 14 anos, o outro vai fazer seis anos. Perceber que para eles eu sou 'o pai', sou aquilo que o meu pai foi para mim... No entanto, sendo eu, tenho oportunidade de perceber o quanto me afasto da forma como via o meu pai. Sou uma pessoa imperfeita, cheia de aspectos prosaicos, não sou nada um ser mitológico. Isso retirou metáforas e possivelmente acrescentou uma série de novos elementos a este livro".

 

Neste romance Ilídio, uma das personagens, tem seis anos e vai percebendo que a mãe o deixou e nunca mais volta. "A minha forma de tentar dar vida às personagens é misturar-me com elas. Dar-lhes a minha vida.". Por isso uma das cenas mais forte deste romance resultou da experiência de estar próximo de crianas. "De certa maneira esse sentimento que é sugerido naquele primeiro capítulo acaba por estabelecer um sentimento de orfandade, de que estamos todos de certa forma entregues a nós próprios e temos de traçar o nosso caminho. O conforto que não tivemos não nos vai ser dado. Se não o tivemos naquele momento, não vale a pena passarmos a vida a tentar tê-lo por dívida antiga."

 

 

O enredo e o estilo

 

 

Peixoto, que se formou em Línguas e Literaturas Modernas e deu aulas de Inglês e recebeu o Prémio José Saramago em 2001, quis dar mais valor ao enredo neste romance, sobrepô-lo ao estilo.

 

No entanto, há uma particularidade. "Livro" tem uma primeira parte realista (até à página 204), a que depois é acrescentada uma segunda parte desconstrutivista. "De certa maneira, o livro escangalha-se", ri-se. "Antes de começar a escrever a primeira palavra eu já tinha a ideia de que no final ia existir algo de muito extravagante. Já tinha a ideia de tentar que aquele livro que é pousado nas mãos do filho, na primeira frase, que foi a primeira frase que escrevi, se transformasse no próprio livro que a pessoa tem nas mãos. Que existisse essa auto-referencialidade."

 

Colocou círculos à volta de palavras, fez brincadeiras à Raymond Queneau, coisas lúdicas à OuLiPo. "Achei que dava lógica ao que estava antes. Alguns aspectos que possam ser menos realistas na primeira parte, ficam relativizados por percebermos que aquela história não foi vivida na primeira pessoa: é uma súmula de informação que se foi recolhendo, contada por algumas das personagens, adquirida de de diversas maneiras."

 

Outra novidade é a linguagem.

 

Há uma família encostada a uma das paredes do salão onde decorre o lançamento, todas mulheres, várias gerações. Ao ouvi-las não há dúvida de que foi dali que veio este romance onde uma das personagens é "a filha do Pulguinhas Pequeno, a neta do Pulguinhas".

 

D. Antónia acaba de receber um autógrafo e Zé Luís diz-lhe a Pulguinhas do livro não é ninguém em especial. Dona Antónia tem orgulho em ser Pulguinhas, de nome. Nas Galveias existem muitos Pulguinhas e muitas Pulguinhas. "Deram-me uma picadela e dei estas Pulguinhas todas", diz a mulher mais velha e todas riem. D. Antónia ainda não leu o livro mas sabe bem daquela história: os seus filhos estão emigrados em Inglaterra. "Cá não há mprego, Portugal está mesmo um caos. Até tenho pena. De quê? De os nossos filhos estarem lá. Também o que vêm para cá fazer? Arrancar ervas?! A vida está difícil em toda a parte." Alguém puxa o "Livro" para si, "Dona Antónia, posso ver?" Lê alto.

 

O escritor, que começou a publicar nas páginas do "DN Jovem" e lançou o seu primeiro livro numa edição de autor, utiliza a linguagem do dia-a-dia no Alentejo ou típica dos que emigraram para França. "Tive de fazer algumas cedências porque havia palavras que ninguém conhecia, de outras não abdiquei", explica. "É impressionante, por exemplo, que o verbo 'amarguçar' não exista no dicionário. O adjectivo 'plancho' também não existe! Tive de colocar estas palavras num livro na esperança de que no futuro alguém as coloque no dicionário! Porque eu só do tempo em que nós 'amarguçávamos' quando íamos jogar aos 'esconderêros'. Eu pergunto às pessoas se elas sabem o que são os 'esonderêros', ninguém sabe. É incrível!", ri-se o escritor que deve à mãe "ter tido esta oportunidade de encontrar a vocação na escrita. A minha mãe é incansável nessa narrativa permanente e tem um vocabulário vastíssimo que em muita medida está presente neste romance e que tem por vezes corruptelas, como 'desentropeçar' que é desentorpecer. Ou em vez de polaco, 'polonés'. Foi uma marca do português tocado pelo francês que não resisti a colocar. Cá as personagens não conheciam a palavra polaco e aprenderam-na em França pela primeira vez como 'polonês'. Na segunda parte do romance, há uma grande concentração de palavras como as 'auto-rutas', os fogos 'ruges', as 'embutelhagens'. Se o 'cocktail dinatoire', o 'dress code' e o 'after-party' são aceites e até fazem parte de alguma coisa que é valorizada, por que se desprezam as 'vacanças' que têm uma origem semelhante? Porque é que um cocktail dinatoire é mais bonito do que um lanche ajantarado?"

 

Naquela segunda-feira, Zé Luís levou para a mãe. D. Alzira, o primeiro exemplar do livro. Ela sabe bem do que se trata. Foi para França aos 23 anos e aí ficou seis anos. Conversou muito com o filho enquanto ele estava a escrever. As pessoas das Galveias levam 'muito a peito' tudo o que ele coloca nos livros. "Não é uma realidade. Ele mistura pormenores com ficção. E as pessoas ficam a pensar que é verdade." Num texto escreveu que a mãe tinha ido ao médico ao hospital. Foi uma trabalheira para D. Alzira. Ninguém acreditava que não era verdade, que ela não estava doente. "Pensavam que eu estava a esconder o assunto", conta.

 

"Não sabia ler e já era doido por livros. Antes de entrar para a escola, tínhamos de lhe ler banda-desenhada e histórias. Dizia: 'Tomara que o rapaz cresça porque era uma canseira'", brinca. Sabe que pertencer ao mundo dos livros é a felicidade do filho que nasceu numa terra onde só havia a biblioteca itinerante. "Nasceu para isto." Que o faça "dentro do modo que sabe fazer", deixa-a muito feliz.

 

O périplo para o lançamento de "Livro" começou nas Galveias e Peixoto fará 40 apresentações em várias localidades do país, participa num festival em França e fará apresentações em Paris, uma delas na Sorbonne. Em Novembro vai ao Chile e, em Dezembro, a Inglaterra. O ano passado, esteve no Uruguai, Canadá, Roménia e Brasil.

 

"Livro" foi escrito em Lisboa e em cinco semanas de Nova Iorque, depois de ter regressado do lançamento de "Nenhum Olhar" na Índia, onde tinha estado 20 dias e de onde "vinha cheio de estímulos e de vontade de escrever".

 

A sua vida é isto: quase mais tempo fora de Portugal do que aqui, o que lhe atrasa a escrita.

 

Foi graças a Liz Calder, a editora inglesa que inventou a Feira Literária Internacional de Paraty, que "Nenhum Olhar" foi publicado na editora Bloomsbury, numa tradução feita por Richard Zenith. O "Financial Times" incluiu-o na lista dos melhores livros publicados em Inglaterra em 2007. Saiu depois nas EUA na editora de Nan A. Talese (a mulher de Gay Talese), do famoso grupo Random House. Prestes a sair em Inglaterra está "Cemitério de Pianos", traduzido por Daniel Hahn, tradutor de Saramago e de Agualusa. José Luís Peixoto é o único autor português representado pela agência literária Curtis Brown que representa também Margaret Atwood, William Boyd, John Le Carré, Richard Ford, David Lodge, etc. Quando regressa às Galveias, sabe que muito mudou. "A principal mudança nas Galveias sou eu. Já não sou a pessoa que andava lá a correr", diz, nunca esquecendo que só começou a escrever sobre as Galveias quando deixou de viver lá.

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