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Recortes sobre José Luís Peixoto e a sua obra.
Por Rogério Pereira
Após intervalo de 12 anos, o português José Luís Peixoto retorna à poesia em Regresso a Casa. Lançado em 2020, o livro foi escrito — depois de abandonado um projeto de romance — durante a pandemia que desafia o mundo: “A poesia acabou por ser a minha maneira de lidar, através da literatura, com o que estava a viver”, diz o autor nesta entrevista concedida por e-mail.
Imergir na fabulação, aliás, vem sendo a forma com a qual Peixoto lida com diferentes questões há muitos anos — pelo menos desde seu primeiro livro, Morreste-me (2000), no qual constrói um comovente relato sobre a morte de seu pai. “Trata-se de algo que, por vários motivos, foi muito traumático na minha vida e, ao mesmo tempo, trata-se de uma reflexão extraordinariamente abrangente “, explica Peixoto, que segue visitando o assunto da paternidade — e tudo o que vem a reboque — ao longo de sua trajetória.
Hoje, aos 46 anos, o autor parece cultivar a mesma paixão que tinha pelas letras quando, ainda adolescente, descobriu a ficção e começou a praticar o exercício diário da literatura — um modo de encarar a vida que, o próprio reconhece, tem muito de positivo e negativo. Mas resiste, tão firme quento possível, em uma sociedade cada vez mais frenética e ansiosa. “temos um longo trabalho pela frente, mas não imagino um mundo em que o livro desapareça”, diz.
Na abertura (espécie de “advertência” ao leitor) de Regresso a Casa há uma fé – sem ser religiosa – na poesia e em suas possibilidades: “um livro de poesia,/como um regresso a casa”. E mais adiante: “O poema é como uma casa,/ e a casa protege-nos”. De que maneira a literatura é capaz de nos proteger num mundo tão afeito a violências e desigualdades, sejam sociais, culturais, econômicas?
Todas as experiências que a literatura pode facultar começam por ser intelectuais. Creio que, mais tarde, podem estender-se a outras dimensões, mas isso já dependerá da disponibilidade e da capacidade de cada um. Essa ligeireza de movimentar-se no interior da literatura, de transformá-la em algo que traga esse tipo de vantagens, resulta não apenas das capacidades racionais, da capacidade de lidar com raciocínio lógico, de estabelecer relações, etc., mas advém também do modo como cada pessoa convive consigo própria e com os outros, da generosidade e empatia que consegue ter para consigo própria e para com o mundo. Nesse sentido, existem aspetos da literatura que, de uma maneira implícita, trazem benefícios indiscutíveis: o desenvolvimento da linguagem é estruturante e fortalece-nos a vários níveis, o pensamento abstrato é imprescindível para tomarmos alguma consciência da nossa condição e do universo que nos rodeia. Ainda assim, há círculos mais profundos daquilo que a literatura nos pode proporcionar que exigem um esforço e uma disponibilidade de outra ordem. É por isso que nem todos os grandes leitores são naturalmente empáticos ou, sequer, gentis. A literatura não nos transforma automaticamente em pessoas melhores. A literatura é um exercício e, por isso, depende também das características de quem o realiza. Sob o ponto de vista social, a escrita e a leitura, que são as formas diretas de exercício da literatura, podem ser ferramentas poderosas, mas primeiramente têm de passar a etapa individual. Se as palavras fizerem sentido para o indivíduo, hão de transformar-se em atos e, assim, tocar a sociedade.
No poema Quarentena, você escreve “transformo-me devagar noutra pessoa”. Qual foi o maior impacto da reclusão nos últimos meses em sua vida pessoal e como escritor?
Confesso que fazia parte do grupo de pessoas que, no início de 2020, não imaginava que a pandemia fosse atingir as proporções que testemunhámos ao longo do ano. Em fevereiro, estava a trabalhar num romance e, quando se iniciou a quarentena coletiva, não consegui continuar esse projeto. Por um lado, a casa ficou cheia, os filhos deixaram de ir à escola; por outro lado, comecei a sentir uma certa forma de claustrofobia. Apesar de viajar bastante, ou talvez por isso mesmo, aprecio muito estar em casa. No entanto, nesses primeiros meses da quarentena, ficar em casa obrigatoriamente pareceu-se muito com prisão domiciliária. Ao mesmo tempo, vivíamos num mundo monotemático, apenas se falava da pandemia na imprensa e em toda a parte. Foi justamente nesse período que escrevi esse poema a que chamei Quarentena. A poesia acabou por ser a minha maneira de lidar, através da literatura, lidar com o que estava a viver. Trata-se de um género que tem uma relação muito próxima com a metáfora e, de certo modo, o que estávamos a passar nesse período era como uma grande parábola, cheia de significados. Foi desse modo que, ao fim do dia, quando encontrava momentos de maior sossego, fui avançando com a escrita de poemas e, assim, muito rapidamente, o livro de poesia Regresso a Casa tomou forma. Essa escrita ajudou-me bastante a lidar com esse período e, também, deixou-me muito realizado por constituir um regresso à publicação de poesia, pois o meu último livro desse género foi publicado já em 2008. Não quero deixar passar tanto tempo até escrever o próximo.
É muito comum lermos na imprensa e nas redes sociais que sairemos “diferentes” deste momento histórico. Você acredita que esta crise mundial possa trazer benefícios ao convívio humano?
Há dias em que tenho a certeza de que sim e, logo depois, há dias em que me convenço de que não. Parece-me que, apesar da quantidade de meios que temos para registar e conservar, vivemos um tempo em que a memória não é valorizada. Estima-se muito mais a novidade. Essa obsessão tem-nos levado a vertigens insensatas de consumo, a um respirar sôfrego. Considerando essa tendência, creio que uma memória traumática como a que teremos desta pandemia corre o risco de ser excluída ainda com mais facilidade. Nesse caso, se não houver uma reflexão, parece-me difícil que cheguemos a aprender algo de valor. Ao mesmo tempo, o individualismo reinante e a polarização cega não parecem dar boas indicações. Hoje, como vê, não estou muito confiante nessa evolução. Volte a perguntar amanhã, talvez me encontre mais otimista.
Você concorda que a literatura vem perdendo espaço na sociedade, levando-se em conta os índices de leitura, o avanço feroz das mídias digitais, a inexistência de políticas públicas de leitura (no caso do Brasil)?
Na sequência do que dizia, hoje, a literatura existe em confronto com aquelas que são as tendências deste momento. O texto literário aspira a uma consciência que apenas é possível com tempo. Atualmente, de modo paradoxal, não há tempo. Ou seja, ninguém parece ter tempo. Se mantemos contato com esta sociedade, se vivemos nela, ao seu ritmo, a voracidade engole-nos. A ambição insaciável não é humana, a notícia constante de tudo não é humana. A literatura é o contrário dessa ansiedade. A literatura é reflexão, meditação, não é o estímulo constante da dopamina. Ainda assim, mesmo que não seja tão consumida como o youtube ou o netflix, a literatura mantém o seu papel. Em termos qualitativos, não é ultrapassada por nenhuma outra forma de expressão naquelas que são as suas caraterísticas fundamentais, os seus verdadeiros propósitos. Por isso, com mais ou menos público, a literatura continuará a ser estruturante na formação de uma consciência coletiva. Tenho muita pena por haver tantos que sejam colocados no lado de fora das possibilidades que a literatura apresenta, essa é uma nuance de múltiplas exclusões, mas não temo a extinção desta forma. O mundo precisa dela, mesmo que os poderosos raramente o reconheçam.
Neste cenário, de que maneira a literatura pode impactar na esfera pública? Até que ponto os escritores podem interferir nas questões sociopolíticas de seu tempo?
Ter uma voz é uma possibilidade política muito poderosa. É extraordinariamente difícil avaliar o real impacto de uma voz literária. Essa contabilização não se faz certamente pelo número das tiragens. Existe aquele momento a que todos os autores aspiram: a leitura propriamente dita, o vínculo autor/leitor. Mas existem também todas as ideias que, como leitores, nunca desenvolveríamos se não tivéssemos lido, existe o eco que difundimos a partir daquilo que lemos. Existe também a dimensão social do escritor, as oportunidades que lhe são oferecidas, como é o caso desta entrevista, como é o caso das apresentações perante um público. Penso que o ato mais político que o escritor pode desenvolver é pensar, levar até às últimas consequências a avaliação daquilo que identifica no mundo. Todas as formas que encontrar de exprimir as conclusões que retirar desse exercício terão impacto na esfera pública. Na melhor das hipóteses, mostrará ao mundo um reflexo que trará conhecimento e compreensão. Um escritor que, na soma das suas obras completas, tenha conseguido acrescentar um grão de consciência ao mundo, terá feito o seu trabalho com distinção.
No clássico romance distópico Fahrenheit 451, Ray Bradbury imaginou um mundo sem livros, onde era necessário queimá-los e suprimir qualquer possibilidade de pensamento crítico. Como você imagina que seria um mundo sem livros?
Na história da humanidade, já existiram momentos sem livros. Quando era preciso copiar os livros um a um, quando não existia papel, esse objeto era propriedade exclusiva de reis e da aristocracia mais elevada. Hoje, há momentos em que avaliamos com ligeireza esse tempo, as trevas que o constituíram. A popularização do livro é uma ferramenta poderosa. Acredito que, como sociedade, não estamos disponíveis para retroceder nessa conquista. Infelizmente, continuam a existir contextos em que o livro não existe. Há cerca de 16 anos, em São Tomé e Príncipe, na costa ocidental africana, numa escola, depois de falar do meu trabalho, no momento das perguntas, um aluno perguntou-me o que é um livro. Temos um longo trabalho pela frente, mas não imagino um mundo em que o livro desapareça. Mesmo em Fahrenheit 451, os livros não desaparecem completamente, existem aqueles que se dedicam a memorizá-los. Penso que os livros apenas deixarão de existir se a humanidade deixar de existir.
As fronteiras entre o literário e o autobiográfico em sua obra se aproximam com bastante frequência. Você se preocupa com o equilíbrio entre estas duas “forças”? Ou esta questão não atravessa as suas preocupações ao escrever?
Esse é um dos temas centrais do meu projeto literário. Não apenas a relação entre o espaço ficcional e o autobiográfico, mas também o biográfico e o documental. Na verdade, esse é uma das dimensões que mais me tenho tentado desenvolver nos últimos tempos. Ou seja, sim, faz parte do meu foco. Por um lado, fascina-me a fronteira inefável entre essas áreas; por outro lado, tratam-se de realidades que apenas se distinguem ao nível da crença do leitor e acho muito curioso o papel da crença do leitor na forma como interpreta um texto. O caráter autobiográfico dos textos tem muita importância para mim e para os que me são próximos. A forma como os outros interpretam essa informação acaba por ter reflexos que tocam a minha existência. No entanto, para quem lê e não tem nenhuma relação com essa realidade, trata-se de uma informação extratextual, que toca a leitura de forma determinante. De um modo mais amplo, trata-se da relação entre o ficcional e o histórico, um tema que é muito relevante quando é observado do lado da literatura e, também, do lado da história. No fundo, são questões elementares da memória e da existência.
Você se dedica à narrativa (romances e crônicas) e à poesia. Em qual dos gêneros se sente mais confortável no momento de escrever? São processos criativos muito distintos?
A experiência de escrita é diferente em cada texto, não apenas em cada género. Não escrevo todos os romances da mesma forma, não tenho a mesma relação com todos eles. O mesmo acontece com a poesia e com as crónicas. Às vezes, a relação com aquilo que se escreve diverge em função do tema, outras vezes muda por ter acontecido alguma coisa naquele dia, ou na véspera daquele dia. Já me senti confortável e desconfortável a escrever em qualquer um desses géneros. E creio que continuará a ser assim. É claro que a gestão de um romance se distingue daquilo que é escrever uma crónica. Ainda assim, há crónicas no interior de romances, há poemas no interior de romances e, às vezes, há crónicas e poemas que, implicitamente, pertencem a uma narrativa maior, invisível para os outros.
Você concorda com o já lugar-comum de que a poesia é um gênero literário superior aos demais?
Não. O maior inimigo da poesia, e de toda a literatura, é o lugar-comum. No dia em que a poesia identificar a imposição de ser um género literário superior, ela própria encontrará forma de se renovar e de contrariar esse lugar-comum. Parece-me mesmo que essa insubmissão já aconteceu sob várias formas. O lugar-comum é uma simplificação, é uma generalização que distorce necessariamente, que aprisiona. E a poesia dá-se muito mal com esse tipo de prisões. A poesia é a liberdade absoluta.
Seu livro de estreia, Morreste-me, é um relato comovente sobre a morte de seu pai. Ele parece ter sido um figura central na sua vida e, de alguma maneira, perpassa boa parte da sua obra. Qual é a importância da ausência/presença de seu pai na construção da sua obra?
Desde que esse livro foi publicado pela primeira vez, em 2000, tive muita oportunidade de refletir sobre esse assunto. Aquilo que até a mim me surpreende é o facto de ainda hoje, em todos os livros que escrevi, ter sempre trabalhado esse tema. Ao longo do tempo, analisei-o a partir de múltiplas perspetivas. No meu último romance, por exemplo, questionei a paternidade a partir do tema da influência literária e, também, referi o assunto do pai ausente. No meu último livro de poesia, o meu pai é referido diretamente várias vezes. Creio que a razão para regressar sempre a esse tema tem a ver com o facto de não o ter resolvido dentro de mim, duvido que algum dia se resolva completamente. Trata-se de algo que, por vários motivos, foi muito traumático na minha vida e, ao mesmo tempo, trata-se de uma reflexão extraordinariamente abrangente. Permite pensar as idades, o ponto que ocupamos na vida, as gerações, aquilo que nos antecedeu e que nos sucederá, entre muitas outras possibilidades. Não é por acaso que a filiação se encontra no centro de tantas religiões, é um assunto de grande profundidade existencial, é a vida, a morte e o amor.
Podemos dizer que, aos 46 anos, você está na metade de sua vida. Que balanço você faz da sua trajetória como escritor desde Morreste-me, sua estreia aos 26 anos, até este Regresso a Casa?
Sim, creio que se chegar a viver 92 anos, será uma vida com um bom tamanho. Tenho muita tendência para estar constantemente a tomar em consideração o que já escrevi. Gosto de pensar a partir desse caminho, estendendo-o numa ou noutra direção. Ainda assim, confesso que, neste momento, tenho mais vontade de olhar para o futuro. Talvez seja assim porque me entusiasma muito os trabalhos que tenho em mãos, projetos que se relacionam com essa linha biografia/ficção, de que já falámos. Olhando para o passado, parece-me que tenho vocação para me dedicar a alguns temas específicos: a origem, a família, Portugal, o próximo e o remoto, o pessoal e o histórico, entre outros. Mas quero acreditar que posso expandir essa lista de formas surpreendentes, inesperadas também para mim.
É muito comum ouvir escritores dizendo que escrevem livros que gostariam de ler. Esta afirmação também vale para você?
Sim, é verdade. Até porque escrever um livro é uma forma muito intensa de lê-lo. Não consigo escrever todos os livros que imagino e, por isso, tento fazer uma escolha ponderada dos projetos a que me dedico. São muitos os critérios que considero para tomar essa decisão, um deles é o prazer que me dá visitar o “espaço” e a “visão” que tenho de determinada ideia. Isso não significa que todos os momentos da escrita sejam feitos de prazer. No entanto, até à última versão, tento encontrar satisfação em todos os momentos do texto. E consigo. Nunca entreguei para publicação um livro com o qual não estivesse completamente satisfeito. É claro que a relação com os meus próprios livros vai mudando com o tempo. Ainda assim, gosto dos meus livros. Tenho muita facilidade nesta afirmação. Não faria sentido para mim publicá-los e autorizar que fossem reimpressos se pensasse de outra forma.
Que tipos de livros mais o encantam? O que você busca na literatura como leitor?
Os meus interesses são diversos, a minha biblioteca é muito eclética a todos os níveis. Quanto à leitura, creio que sou muito otimista e deixo-me cativar com muita facilidade. Dessa forma, acabo por acumular muitos livros que, depois, não consigo ler. Mantenho sempre a esperança de voltar a eles, tenho muita dificuldade de me desfazer de livros, mas tenho livros à espera de serem lidos há muitos e muitos anos. Tenho uma atração pelo bizarro, por tudo o que possa ser um pouco extremo, tanto sob o ponto de vista da proposta estética, como até no que diz respeito ao tema. Esse gosto, com frequência, faz-me chegar a algumas leituras bastante inusitadas. Creio que, se tivesse de referir uma característica marcante dos livros que me atraem, escolheria a originalidade. Ainda assim, não tenho qualquer pudor em ler também grandes best sellers, livros infantis, ensaios sobre temas que não têm qualquer relação com a minha realidade, etc.
A infância tem um grande peso na sua literatura, em livros como Morreste-me, Galveias, Livro e Nenhum Olhar. O catalão Enrique Vila-Matas tem uma frase emblemática: “A infância é uma batalha perdida”. Você concorda que estamos sempre “batalhando” com nossa infância? Como se dá a sua batalha particular?
Na vida, a infância tem uma importância bastante marcante. Há o vínculo profundo que deixa essa primeira interpretação do mundo, o choque de tomarmos conhecimento de algo que, durante um período, acreditamos profundamente ser a verdade. Depois, há a vida inteira para recordarmos esse tempo, para o distorcermos. Pela minha parte, sempre escolhi olhar essas lembranças de frente. Observo-as com o mesmo fascínio e com a mesma dúvida com que observo o futuro. Não tenho certezas fechadas em relação ao que vivi, tanto no que diz respeito à infância, como no que toca a outras idades. Ao longo do tempo, tenho-me relacionado de múltiplas maneiras com esse passado. Esse movimento parece-me natural porque eu próprio estou em movimento, não sou uma figura estagnada, a minha memória também não. Assim, é certo que talvez se possa dizer que mantenho uma batalha com a infância, mas não é mais violenta do que a batalha que mantenho com quem sou ou com quem imagino que serei.
Como a literatura mudou sua vida? E em que momento você decidiu que ela seria algo central?
Na adolescência, quando descobri a escrita com intenção literária, senti de um modo muito claro os efeitos do exercício diário da literatura. Recordo com uma certa ternura o momento em que me dei conta de que colocava pontuação nos pensamentos. Teria talvez uns 17 anos. Depois, a partir de certa altura, principalmente a partir do momento em que a escrita se transformou na minha profissão, deixei de reparar nessas pequenas idiossincrasias. Entreguei-me completamente a esta forma de perceção. Tento manter a consciência de certos aspetos que me ajudem a não perder o sentido prático, a distinguir as decisões que tenho para fazer e a gerir a minha vida, mas o meu quotidiano é literatura. Mais do que isso, o meu pensamento é sempre calibrado por esse viés. Há aspetos positivos e negativos nesse modo de encarar a vida: muito positivos e muito negativos.
Que conselho você daria a um/a jovem que pretende ser escritor/a?
Não é fácil dar conselhos. Os conselhos que se adequam a todas as pessoas são mais uma vaga sugestão do que, realmente, um conselho. Para dar conselhos, é preciso conhecer bem a quem se destinam, saber que essa pessoa está interessada nos seus conselhos e, principalmente, ter a suficiente sensibilidade para ter essa pessoa em mente e não os seus próprios e obscuros desígnios. Nesse espírito, ousaria aconselhar esse/a jovem a não perder de vista as razões que o/a levam a querer escrever. Aconselharia uma reflexão periódica sobre essa pergunta: por que razão faço isto?
José Saramago é o único autor em língua portuguesa a ganhar o prêmio Nobel de Literatura. Há quem considere o português – mesmo sendo o quinto idioma mais falado no mundo, com cerca de 260 milhões de falantes – uma língua periférica. Como você vê o espaço da língua portuguesa no mundo literário?
A literatura valoriza cada ser humano. Sempre que ouço alguém queixar-se de que Portugal é um país pequeno, apenas com 10 milhões de habitantes, sugiro a essa pessoa que conte até 10 milhões. Nunca ninguém aceitou essa minha sugestão, mas acredito que demorasse bastante tempo. O universo de falantes da nossa língua é enorme, composto por um caleidoscópio de nuances. Em primeiro lugar, nós próprios temos de reconhecer essa riqueza. Pessoalmente, tenho uma ótima experiência como autor português no mundo. Existe uma grande comunidade de tradutores de língua portuguesa e, em editoras maiores ou menores, existe interesse por dar a conhecer a nível internacional as culturas que compõem este espaço linguístico. Há instituições do estado português que apoiam a internacionalização da literatura portuguesa e que, em igual medida, apoiam a difusão internacional dos autores dos países africanos que usam este idioma. São diversos os exemplos de autores de países africanos de língua portuguesa que aproveitam estes apoios e que têm a sua obra bastante traduzida. Nesse âmbito, infelizmente, o Brasil não cumpre o seu imenso potencial. Trata-se de um país com um enorme espaço no mundo, que gera muitíssima curiosidade e interesse. No entanto, há grandes obstáculos: por um lado, o estado brasileiro não dá um apoio significativo aos seus autores; por outro lado, as profundas desigualdades que existem no país, a vários níveis, fazem com que seja difícil para os autores imporem-se até nacionalmente. Esses problemas, no entanto, não são do âmbito de quem escreve. Deveriam ser competência de quem tem a responsabilidade de criar uma política cultural, que inclua a literatura. Quem escreve deve tentar chegar profunda e intimamente a um leitor. Se conseguir fazê-lo, terá potencial para chegar a todos.
O acordo ortográfico de unificação da língua portuguesa, em vigor desde 2009 no Brasil, ainda gera muita discussão, em especial devido a certa repulsa por parte dos portugueses em aceitá-lo. Como você avalia este acordo na prática, levando em conta a diversidade cultural dos países?
Nunca tive qualquer interesse por esse assunto. A ortografia é o menor dos meus problemas. É-me absolutamente indiferente se colocam o “c” antes do “t” ou não. Sei ver que existem algumas normas neste acordo que são incoerentes, mas eu próprio sou incoerente muitas vezes e estou pouco me lixando para esse debate. Pela minha parte, apenas espero que se ponham de acordo. Tenho um filho de 16 anos que, como todos os seus colegas, aprendeu a ler e escrever com a atual ortografia. Aqui em Portugal, há pessoas que juraram que, até à morte, nunca usariam esta ortografia. Uma parte delas já morreram.
Recentemente, o Papa Francisco disse que “a Covid não é obra de um Deus cínico e implacável”, reforçando que este é um momento de compaixão, solidariedade e diálogo com o próximo. No romance Em teu ventre, você trata literariamente das aparições de Nossa Senhora de Fátima, no interior de Portugal, em 1917. Como é a sua relação com Deus?
Não sei suficiente sobre mim e sobre palavras para dar uma reposta que não simplifique de forma grosseira este assunto. Sei e não sei a resposta.
O que mais te assusta, amedronta, no mundo atual?
O ódio.