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Recortes sobre José Luís Peixoto e a sua obra.
Com "Uma Casa na Escuridão", Peixoto se destaca entre escritores da nova literatura portuguesa
Daniel Benevides
"Era uma vez o fim de tarde." A um só tempo muito familiar e estranha, a primeira frase dá o tom do terceiro romance do premiado escritor e poeta José Luís Peixoto, lançado em Portugal em 2002 e agora aqui. Pois "Uma Casa na Escuridão" pertence a um gênero único, misto de fábula apocalíptica, realismo mágico e prosa poética. Algo entre o Ítalo Calvino de "Um Visconde Partido ao Meio" e "Nos Penhascos de Mármore", do Ernst Jünger. Mas com o inconfundível toque de melancolia da terra de Camões.
A história começa suavemente, com o mencionado fim de tarde. Sabe-se, no entanto, que há uma ameaça no ar. As epígrafes, falando de misericórdia e crueldade, colocam, de cara, nuvens negras sobre o texto. O narrador é, por acaso ou não, um conhecido romancista, para quem as palavras têm poderes especiais. Elas são capazes, por exemplo, de conjurar, tornar concreta, "a mais bela mulher do mundo".
Na casa do título vivem, num estado de torpor contemplativo, o narrador, sua mãe apática, o pai moribundo e as prestativas escravas madalena e miriam (assim mesmo, com minúscula, como os demais nomes no livro), além de um bando de gatos, que se acumulam pelos cômodos e corredores. A tranqüilidade só é perturbada pela escrita febril do narrador, que assim dialoga com a amada que lhe surge na imaginação. "Dentro de mim, ela existia para lá de mim", escreve.
Uma violência inusitada começa a dar as caras quando o pai, antes do último suspiro, aplica uma machada no peito de madalena, que era sua amante. A cena, descrita com naturalidade, mostra que estamos em um terreno movediço, entre o real e o absurdo. Jorra o sangue, e as palavras continuam a fluir indiferentemente, em seu ritmo encantatório, às vezes se repetindo, como num mantra, numa cantata.
A partir daí, as surpresas se sucedem, prendendo o leitor, que, no entanto, não sabe bem o que pensar. E nem precisa. No curioso mundo de Peixoto há espaço para tudo, sem discriminação, inclusive a ironia. Dentro do romance, por exemplo, é crime editores recusarem originais de novos autores. O próprio editor do narrador está preso e acaba morrendo trespassado por uma lança, no momento em que liderava uma rebelião.
Se a literatura - ou o mau uso dela - tem esse peso, a música simplesmente inexiste, no que talvez seja outro golpe de ironia. É preciso surgir um violinista estrangeiro, alguém de fora do âmbito do livro, para que ela entre na história, embevecendo os personagens. Mas o andamento ora distendido, ora brusco do romance, trata logo de destruir esse enlevo sonoro. É quando surge a escuridão, na forma de uma horda de bárbaros com barbas até a cintura, empunhando espadas de fio cruel. O engraçado é que, na correria, em meio ao pânico, a população faz filas nas livrarias, como se os livros fossem produtos de primeira necessidade (bem...são, né? Ou não?).
Contar mais seria deselegante. O que se pode dizer é que, como se quisesse combater um excesso de delicadeza ou lirismo, o autor adiciona elementos de extrema brutalidade, deixando o singelo "era uma vez" inicial com cara de porta para o inferno. Trechos de salmos abrindo os capítulos dão mesmo uma proporção bíblica às mutilações reais e metafóricas que se seguem.
"Uma Casa na Escuridão" é, em suma, um livro profundamente desencantado, mas escrito num estilo de excêntrica beleza. A contradição aparente entre forma e conteúdo provoca um peculiar efeito de distanciamento. Peixoto, cujo "Cemitério de Pianos" também foi lançado por aqui, não parece querer chocar o leitor, ainda que suas imagens cheguem às raias de um horror impensável. Sua obra é antes, como bem alerta a orelha, uma alegoria da falência da civilização. A intensidade lírica, no entanto, sugere menos uma proposta de reflexão e mais uma emocionante tentativa de expiação. A culpa, afinal, é nossa.